sábado, agosto 23, 2003
FRAGMENTO EXTENSO DE UM CONTO 1
"Mais duas semanas se passaram. Ivan Ilitch já não saía do canapé. Não queria meter-se na cama e permanecia ali estendido. Só, completamente só, a maior parte do tempo de cara voltada para a parede, sofria as mesmas insolúveis angústias e ruminava o mesmo pensamento sem saída:
«Mas que vem a ser isto?... Será mesmo, a morte?... E a voz interior respondia:
-Sim, sim, é ela.»
«Mas porquê esta tortura?»
E a voz interior tomava a replicar: «0h! É assim. Por nada.»
Aqui, atingia-se o limite, e não podia ultrapassá-lo.
Desde os primeiros tempos da sua doença, desde a, sua primeira visita ao médico, duas correntes contrárias partilhavam entre si a vida de Ivan Ilitch e se sucediam uma à outra: a angústia, com a espera de uma morte horrenda, inconcebível; e a esperança e o exame curioso da actividade do seu organismo. Alternadamente, erguiam-se à sua frente o rim ou o apêndice recalcitrantes e a morte pavorosa de que nada o podia salvar.
Estas duas correntes, repito, tinham-se sucedido uma à outra desde o início do mal. À medida que a situação se agravava, as considerações renais tomavam-se cada vez mais fantásticas e duvidosas à medida que a ideia da morte próxima ia tomando corpo.
Bastava-lhe recordar-se do que era três meses antes para imediatamente verificar que tinha vindo regularmente a descer a encosta e a perder toda a esperança.
Virado para a parede, só numa grande cidade, no meio de parentes e amigos, só como nem nas profundezas submarinas se pode estar, nem em qualquer ponto do globo, Ivan Ilitch transportava-se, em imaginação, para o seu passado. As visões surgiam uma após outra. Normalmente partia da actualidade, remontava até à infância e aí se detinha.
Se lhe propunham comer ameixas cozidas, logo se lembrava das da sua infância, pretas, e enrugadas, com um sabor especial, aquelas ameixas de Agen que nos enchiam a , boca de saliva quando já só restava o caroço...Esta recordação provocava outras: a ama, irmão, os brinquedos...
«0 melhor é não pensar nisto... É doloroso de mais!», dizia para consigo Ivan Ilitch, transportando-se num salto para o presente.
Um botão do canapé, o cabedal enrugado em redor do botão...
-0 cabedal é caro e não dura... Aliás, discutimos por causa disso... Tal como da outra vez, quando rasgámos a pasta de cabedal, do pai... Fomos castigados, e a mãe,trouxe nos bolos ... »
Sempre a mesma obsessão da infância. Ivan Ilitch sofria, esforçava-se por expulsar a visão, por pensar noutra coisa...
Mas logo a outra corrente se punha em movimento, paralelamente. Ivan Ilitch pensava na sua doença, no agravamento do seu estado. Quanto mais. remontava ao passado, mais se descobria vivo. Quanto mais coisas boas havia na sua vida, mais intensa ela era. Dois elementos que se fundiam.
«Os sofrimentos vão piorando, assim como a vida foi indo de mal a pior», pensava.
Um ponto claro, lá atrás, muito ao longe, no princípio, um clarão que escureceu cada vez mais rapidamente.
«Uma progressão inversamente proporcional ao quadrado da distância da morte», resolveu lvan lIítch.
E a imagem da pedra lançada no vazio e sujeita às leis da aceleração, gravou-se-lhe na alma.
A vida não passava de uma sequência de, sofrimentos crescentes, tendentes irresistivelmente para a única solução, a mais dolorosa.
«Despenho-me no vazio ... »
Estremecia, mudava de posição, queria, defender-se, e verificava que tinha de se sujeitar. Então, os seu olhos, cansados de olhar mas incapazes de deíxar de ver, fixavam-se, nas costas do canapé. E esperava. Esperava a queda, o golpe de misericórdia, o aniquilamento.
«É impossível resistir, pensava, mas ao menos que eu pudesse compreender. Ora, isso é proibido. Poderia explicar tudo dizendo que não vivi como devia. E isso, recuso-me a reconhecer ...»
Então não levara ele uma vida decente, regular como deve ser?
«Ah, não, não posso admitir isso!, protestava ele, esboçando um sorriso, como se alguém o pudesse ver e deixar-se enganar... Não há, motivo que explique!... o sofrimento, a morte... Para quê?...»"
TOLSTOI, Leon (trad. Pedro Tamen), "A Morte de Ivan Ilitch", Lisboa, Edições Sá da Costa, 1999, p.p. 56-58.
posted by Luís Miguel Dias sábado, agosto 23, 2003