quinta-feira, julho 03, 2003
POESIA
A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER
No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas
Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos
Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva
Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito
Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio
Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios
Isto foi antes
de aprender a álgebra
A casa onde às vezes regresso
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
Atalhos
Não constitui segredo
contam a sua história
mesmo se por atalhos
as coisas insignificantes de uma vida
assim o fragmento que reconheço
tanto tempo depois
escrito num caderno
«? reencontrarei ainda o vento dessa praia
de que me despeço
nos penhascos frente ao mar
o caminho abandonado?»
reencontrarei ainda
a expressão distraída que me deixava
a um passo daquilo que nem hoje sei?
O nocturno atalho
O que de sublime e doloroso o tempo guarda
precisava disso de maneira que até é difícil
porque se sentia só nos campos
onde os outros triunfam
descia o sombrio, o nocturno atalho
assim chegava cedo de mais à beira não do fim
mas do informulável
para quem as nossas pequenas imposturas
são uma perda, um delito, uma culpa
José Tolentino Mendonça
Poemas dos livros, Os Dias Contados (1990) editado pela Secretaria Regional da Cultura da Madeira; A que Distãncia Deixaste o Coração (1998) Assírio & Alvim; e Baldios (1999) Assírio & Alvim.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, julho 03, 2003