sábado, julho 19, 2003
LITERATURA
“Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, e até a brisa que corre me sabe a sal. Há ondas de mar aberto desenhadas nas tuas calçadas; há âncoras, há sereias. 0 convés, em praça larga com uma rosa-dos-ventos bordada no empedrado, tem a comandá-lo duas colunas saídas das águas que fazem guarda de honra à partida para os oceanos. Ladeiam a proa ou figuram como tal, é a ideia que dão; um pouco atrás, está um rei-menino montado num cavalo verde a olhar, por entre elas, para o outro lado da Terra e a seus pés vêem-se nomes de navegadores e datas de descobrimentos anotados a basalto no terreiro batido pelo sol. Em frente é o rio que corre para os meridianos do paraíso. 0 tal Tejo de que falam os cronistas enlouquecidos, povoando-o de tritões a cavalo de golfinhos. (...)
Camões/Rua do Alecrim
A descer a Rua do Alecrim é que eu me quero pelas nove e tantas da manhã e no outono, se possível. Deixo o Camões em bronze no meio do largo (sempre com uma pomba no ombro, nunca percebi porquê) e começo a descida. A poucos passos tenho o Eça, didáctico, a levantar o véu da fantasia a uma beldade desnuda como se alguém se deslumbrasse com semelhantes intimidades. Nem me volto, sigo em frente.
Nisto, quando olho para o fundo da rua, descubro que os enormes guindastes da Lisnave da Outra Banda do rio se encontram quase no lado de cá, em cima do Cais do Sodré. Atravessaram o Tejo ou foi o Tejo que encolheu durante a noite?
Sebastião Opus Night (personagem do romance Alexandra Alpha de José Cardoso Pires), militante do whisky nos bares destas redondezas, passa a vida a prevenir que Lisboa é toda em trompe-l`oeil. (Trompe-l`oeil, assim mesmo, palavras do próprio.) Só que ele é que anda de olho trompeado desde que nasceu. Irmão dum juiz Opus Dei, o Opus Night nunca na vida desceu à rua antes do anunciar da noite e só no dia do funeral é que abrirá uma excepção a essa regra porque pelo horário dos cemitérios os mortos fecham às cinco. Até lá, entre os câmbios da luz do anoitecer e a ressaca dos whiskies da véspera, Opus Night, Opus Knight ou Copus Night continuará a protestar que Lisboa, à luz do sol, não serve para mais nada senão para lhe baralhar a vista.
Diz mas nunca viu Lisboa a essa luz, era o que faltava; e se a visse talvez ficasse de queixo caído porque é uma cidade em geometria esquiva, colinas, requebros, ondulações, reflexos dum rio a tons incertos, conforme os dias e conforme as marés, um corpo para soletrar sem pressas.
Ah, sim. «Se fosse Deus parava o sol sobre Lisboa», escreveu Fernando Assis Pacheco num poema tonto de luz (a tão citada luz sempre imprevista). De acordo, mas uma cidade de caprichos como esta nunca o sol a pode iluminar por igual. Tem de se lhe afeiçoar aos contornos e aos instintos desordenados, à sua placidez aqui, ao burburinho dos bairros velhos acolá, e é com esses desvelos que ele lhe dá cor singular.
Cor. De Lisboa é caso para dizer que até os daltónicos lhe discutem a cor. Veja lá, de preferência o ocre pombalino, recomenda um byroniano de passagem. 0 verde, o verde, contrapõe alguém logo a seguir, com os olhos no Terreiro do Paço, «até o cavalo de D. José vai ficando verde, comido de mar», já lá dizia Cecília Meireles. Ou o branco, o branco lembra espumas de oceano, cal de muros, Mediterrâneo, «sente-se uma nostalgia branca ... », escreveu Mary McCarthy numa Carta de Portugal e Alain Tanner, cineasta civilizado, não esteve com mais aquelas e chamou a isto Cidade Branca.
Cidade Branca, que cegueira a deste Tanner lumière. É cor, o branco do filme dele ou é metáfora? Interroga as impetuosidades duma luz que no mesmo lugar, no mesmo instante e na mesma cor nunca se repete? Pergunto.
Por essas e por outras é que a cor da nossa cidade é tão difícil aos pintores. Descobrimo-Ia por vezes nos desenhos aguarelados de Bernardo Marques, sim, um pouco; ou na suavidade ingénua de Carlos Botelho. Está naquele entardecer quase soturno do «Largo de Camões» de Abel Manta, na «Rua Augusta à Noite» dum modestíssimo académico como José Contente ou na descrição do «Alto de Santa Catarina» por João Abel, aí sem dúvida. Podemos vê-Ia em azul na versão de Vieira da Silva como já a tínhamos visto num célebre azulejo do século XVIII, mas em Vieira da Silva, Lisboa é uma memória que lhe ficou no coração porque, mesmo noutros temas bem distantes, muitos dos seus discursos cromáticos são ecos dos azulejos lisboetas na luz e na composição.”
PIRES, José Cardoso, “Lisboa Livro de Bordo vozes, olhares, memorações", Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997.
Abel Manta, Praça Luís de Camões, 1932. / Praça Luís de Camões, 1964.
posted by Luís Miguel Dias sábado, julho 19, 2003