quinta-feira, julho 10, 2003
LITERATURA
"Como machadadas, as grandes datas marcam o século XX europeu com golpes profundos. A primeira guerra de 1914, a segunda, depois a terceira, a mais longa, dita fria, que termina em 1989 com o desaparecimento do comunismo. Além destas grandes datas que dizem respeito a toda a Europa, datas de importância secundária determinam os destinos de nações particulares: o ano de 1936 da guerra civil em Espanha; o ano de 1956 da invasão russa da Hungria; o ano de 1948, quando os jugoslavos se revoltaram contra Estaline e o ano de 1991, quando começaram todos a assassinar-se uns aos outros. Os escandinavos, os holandeses, os ingleses gozam do privilégio de não terem conhecido qualquer data importante desde 1945, o que lhes permitiu viver um meio século deliciosamente nulo.
A história dos checos, neste século, adorna-se de uma notável beleza matemática devido à tripla repetição do número vinte. Em 1918, depois de vários séculos, obtiveram o seu Estado independente e, em 1938, perderam-no.
Em 1948, importada de Moscovo, a revolução comunista inaugurou pelo Terror o segundo vinténio, que terminou em 1968 quando os russos, furiosos perante a sua insolente emancipação, invadiram o país com meio milhão de soldados.
0 poder ocupante instalou-se com todo o seu peso no Outono de 1969 e partiu, sem que ninguém o esperasse, no Outono de 1989, suavemente, cortesmente, como fizeram então todos os regimes comunistas da Europa: o terceiro vinténio.
Só no nosso século as datas históricas se apoderaram com tal voracidade da vida de todos e de cada um. Impossível compreender a existência de Irena em França sem começar pela análise das datas. Nos anos cinquenta e sessenta, um emigrado dos países comunistas era pouco querido no país; os franceses consideravam então o fascismo o único mal verdadeiro: Hitler, Mussolini, a Espanha de Franco, as ditaduras da América Latina. Só progressivamente se decidiram, em finais dos anos sessenta e durante os anos setenta, a ter também o comunismo por um mal, ainda que um mal de grau inferior, por assim dizer, o mal número dois. Foi nessa época, em 1969, que Irena e o marido emigraram para França. Depressa compreenderam que, em comparação com o mal número um, a catástrofe que se abatera sobre o seu país era muito pouco sangrenta para impressionar os seus novos amigos. Para se explicarem, habituaram-se a dizer mais ou menos o seguinte:
«Por horrível que seja, uma ditadura fascista desaparecerá com o seu ditador, e por isso as pessoas podem conservar a esperança. Pelo contrário, o comunismo, apoiado pela imensa civilização russa, por uma Polónia, por uma Hungria (e não falemos sequer da Estónia!), é um túnel que não tem fim. Os ditadores são perecíveis, a Rússia é eterna. É numa ausência total de esperança que consiste a desgraça dos países de onde vimos».
Exprimiam assim fielmente o seu pensamento e Irena, para o confirmar, citava uma quadra de Jan Skacel, poeta checo desse tempo: fala da tristeza que o rodeia; essa tristeza, ele quereria levantá-la, levá-la para longe, fazer dela uma casa, quereria fechar-se nela por trezentos anos e por trezentos anos não abrir a porta, não abrir a porta a ninguém!
Trezentos anos? Skacel escreveu esses versos nos anos setenta e morreu em 1989, em Outubro, portanto um mês antes dos trezentos anos de tristeza que vira dissiparem-se à sua frente em poucos dias: as pessoas encheram as ruas de Praga e os molhos de chaves nas suas mãos erguidas saudaram, repicando, a alegria dos tempos novos.
Skacel ter-se-á enganado ao falar de trezentos anos? Claro que sim. Todas as previsões se enganam, tal é uma das raras certezas dadas ao homem. Mas se se enganam sobre o futuro, falam verdade daqueles que as enunciam, são a melhor chave para se compreender como vivem eles o seu tempo presente. Durante aquilo a que eu chamo o primeiro vinténio (entre 1918 e 1938), os checos pensaram que a sua República tinha um infinito à sua frente. Enganavam-se mas, justamente porque se enganavam, viveram esses anos numa alegria que fez com que as suas artes florescessem como nunca antes acontecera.
Depois da invasão russa, não fazendo a menor ideia da proximidade do fim do comunismo, imaginaram de novo habitar um infinito, e não foi o sofrimento da sua vida real mas o vazio do futuro que aspirou as suas forças, sufocou a sua coragem, e tornou tão cobarde, tão miserável o terceiro vinténio.
Persuadido de ter aberto, por meio da sua estética de doze notas, perspectivas que iam muito longe à História da Música, Arnold Schönberg declarava em 1921 que, graças a si, a dominação (não disse «glória», disse Vorherrschaft, «dominação») da música alemã (ele, vienense, não disse música
«austríaca», disse «alemã») estaria garantida durante os próximos cem anos (cito-o com fidelidade, falou de «cem anos»). Quinze anos depois desta profecia, em 1936, foi banido, na sua qualidade de judeu, da Alemanha (dessa mesma Alemanha cuja Vorherrschaft quisera garantir) e, com ele, toda a música baseada na sua estética de doze notas (condenada como incompreensível, elitista, cosmopolita e hostil ao espírito alemão).
0 prognóstico de Schönberg, por enganador que tenha sido, continua a ser no entanto indispensável para quem queira compreender o sentido da sua obra, que não se cria destrutiva, hermética, cosmopolita, individualista, difíciI, abstracta, mas profundamente enraizada no «solo alemão» (sim, ele falava do «solo alemão»); Schönberg cria que estava a escrever não um fascinante epílogo da História da Grande Música Europeia (é assim que me sinto inclinado a compreender a sua obra), mas o prólogo de um glorioso futuro que se desdobrava a perder de vista."
KUNDERA, Milan (trad. Miguel Serras Pereira), “A Ignorância”, Porto, Edições Asa, 2002, p.p. 11-15.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, julho 10, 2003