A montanha mágica

domingo, julho 20, 2003

LITERATURA



"0 meridiano das tertúlias

Fernando Pessoa está sentado à chuva na esplanada da Brasileira. Dentro do café está o Almada. Ou esteve. Durante largo tempo habituei-me a vê-lo numa parede em auto-retrato dos anos vinte, na companhia de duas senhoras sofisticadas que pareciam estar à espera de qualquer coisa que havia de vir. Qualquer coisa, o quê? 0 segundo futurismo? 0 próximo comboio de Paris? Até hoje, silêncio absoluto. 0 Almada deixou de ser visto com elas na Brasileira e com a chuva que aí vai não é natural que volte por cá tão cedo.
«Chuvas corridas, tristezas crescidas e venha aguardente para lavar as feridas», dizem os lisboetas de taberna. No entanto, o Pessoa, que sabe disso até de cor porque decilitrou em balcões de muita Lisboa, continua na esplanada à chuva e ainda para mais sem copo.
[«Lá está ele, o pai de todos», dizia Sebastião Opus Night fazendo sinal para a estátua do poeta, sempre que passávamos no Chiado ao lusco-fusco. Não achava bem que o tivessem sentado cá fora para que os turistas viessem tirar a fotografiazinha em tu cá, tu lá com ele, mas antes sentado do que a cavalo como certos heróis de estátua porque, na opinião do Opus Night, o Pessoa devia ser de perna fraca. Em todo o caso era o autor da Mensagem e, como tal, pai de todos os desempregados que andam aos poemas por esse Tejo fora, dizia ele.
«Sim, na cadeira de convidado do Pessoa só Antonio Tabucchi é que estaria certo», murmurava eu invariavelmente e invariavelmente Opus Night guardava silêncio. Para um enfastiado de Lisboa como ele, Tabucchi devia ser um escritor maldito, se é que alguma vez o leu.]
0 pior é que chove. A esta hora Opus Night ainda vai no sono da tarde para aquietar o whisky da madrugada anterior e o Pessoa em bronze, pobre dele, há anos que já está para lá do tempo. À sua frente, no largo, tem um frade putanheiro que há para cima de três séculos fez versos jocosos e que agora chora diarreia de pombas pela cara abaixo, sentado num pedestal. Chiado, é dele que se trata. Ninguém lhe dá atenção mas o homem, além dos versos, foi imitador de vozes e valdevinos ao desbarato. Diz-se.
0 mais estranho é que, apesar de versejador menor e muito provavelmente corrupto, este frade escorpião viu-se passado a monumento de praça e de eternidade sem que ninguém saiba porquê e o seu nome ficou no mapa como a maior referência cultural e mundana do país. Foi na altura mais ou menos em que o Romantismo exalou o derradeiro suspiro e os burgueses de Eça de Queiroz deixaram o Passeio Público de Garrett para subirem ao Grémio Literário.
Chiado, um cenário, um ritual. De charuto a fumegar à porta da Havaneza, Ramalho Ortigão assistiu a passagem por aqui du tout Lisbonne do seu tempo. Snobérrimo como um gato de salão, era uma figura do Álbum de Glórias de Bordalo transposta ao vivo para as tardes urbaníssimas, mão enluvada, bengala fina e o Figaro a espreitar do bolso do fraque. Cumprimentava Teófilo Braga com subida consideração e talvez discutissem os dois alguns parágrafos de Proudhon, não me admirava nada. Ao Fialho de Almeida via-o em bom dia e passe bem, uma vez que a parada das letras com janotas de província como o Fialho ficava uma penúria de se olhar por cima da luneta, achava ele.
Com o Eça encontrava-se muito, apesar de o Eça andar constantemente misturado com as personagens que descrevia. Logo abaixo da Havaneza, no Hotel Universal, tinha sempre um cavalheiro dos seus romances de passagem pela capital, e na Pastelaria Ferrari costumava reservar mesa para certos diálogos e certas cenas de capítulo para uso muito dele. Passear, passeava na companhia do Ega e do Carlos d'Os Maias em voltinhas compassadas pelo Loreto e pelo Largo de Camões, e para dar gosto à malícia ia até ao Conselheiro Acácio que ficava logo ali, na Rua Victor Cordon. À Luísa, tudo leva a crer, procurava-a no Jardim de São Pedro de Alcântara que era onde aquele coraçãozinho costumava fazer horas para cair nos braços do Primo Basilio, esse galdério.
«Subir o Chiado.» Quando nesse tempo alguém dizia isto era como se anunciasse um privilégio do século. Ópera no São Carlos, ceias no Tavares Rico, o Grémio Literário com cavalheiros na varanda para o Tejo à espera dos paquetes da Mala Real e dos jornais da Inglaterra, senhores, tanto viver era realmente subir.
Isso por um lado; por outro, porque o Chiado tinha ganho novas alturas e estava a ganhar muitas mais. A partir da paternalíssima Bertrand, apareceram novas livrarias com as suas tertúlias de literatura e de política; e alfarrabistas; e antiquários. Subindo, subindo sempre, vieram os grandes jornais que ocuparam o Bairro Alto, paredes-meias com os prostíbulos, de navalha e galiqueira. Veio a Biblioteca Nacional, outra conquista. Logo a seguir a Escola de Belas-Artes da contestação à pintura oficial e ao urbanismo de fachada.
Das livrarias, as tertúlias passaram para os cafés. Aquilo era só atravessar a rua e estava-se na Brasileira, mesa com mesa com os mestres das artes e os boémios culturais, para não falar já dos jornalistas que farejavam meio mundo com passagem pela Leitaria do Araújo onde Stuart de Carvalhais rascunhava caricaturas entre dois copos de tinto.
Rua Garrett, o nervo do Chiado, como alguém disse. A Via dos Consagrados para lá dos anos e da morte:
Aquilino Ribeiro, pesado de anos, à porta da Livraria Bertrand, lado a lado com um Columbano em estudante de pintor oitocentista, e no passeio em frente, junto à Sá da Costa, António Sérgio em conversa com um Antero quase menino. Mais abaixo Carlos de Oliveira, muito ao fundo dum café que já se esfumou na memória com o nome de Chiado: está só ou, antes, vislumbro-o a receber homenagens de Raul Brandão, nada mais natural. A uma esquina ponho um pintor em visita que tanto podia ser um expatriado dos anos vinte como da geração dos novíssimos de Paris ou da Slade School de Londres, e numa outra, desconfiados como gatos, Gaspar Simões e alguns críticos literários de várias épocas a espreitarem os poetas e romancistas em trânsito.
Chiado, Rua Garrett, durante mais de um século o meridiano das artes e das letras portuguesas. Bailarinos do São Carlos, cantores da Academia dos Amadores de Música, ali perto. Jornalistas, poetas adiados, conspiradores. De quando em quando passavam damas ao vento e vendedeiras de violetas, faltaria alguma coisa num cenário de tanta vida?
Faltava, faltava sempre. A cada notícia, a cada encontro, havia uma ideia a contestar para logo outra nascer. Realismos, futurismos, surrealismos e todas as muitas rimas que as artes iriam lançar passaram, umas atrás das outras, pelos retiros do Chiado."

PIRES, José Cardoso, "Lisboa Livro de Bordo vozes, olhares, memorações", Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997.



posted by Luís Miguel Dias domingo, julho 20, 2003

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