A montanha mágica

quarta-feira, julho 02, 2003

HOMENAGEM



"A castração do rio Tâmega
Um caso português


Manuel Hermínio Monteiro escreveu notas, comentários, introduções, editoriais. Este é um exemplo, extraído do número 4 de A Phala, de Janeiro / Fevereiro de 1987.


«E a tua água, ó Tâmega, deriva
Da minha oculta fonte espiritual


Teixeira de Pascoaes, Senhora da Noite


Portugal tem saído tão danificado dos incertos «arranjos desenvolventistas» das últimas décadas que, apesar «deste clima» e deste «ar que Deus nos deu» que impeliam Garrett às exteriores «Viagens à Minha Terra», a continuarmos assim, aconselha-se a cada um «viajar à roda do seu quarto» para melhor descanso visual. Conhecem-se regiões em que a degradação as assemelha a um extenso corpo magoado, com inesperados inchaços de arranha-céus, irrompendo do casario mais antigo e harmonioso, e todo o tipo de improvisados pensos-rápidos. O viajante mais atento diagnosticará, facilmente, uma qualquer latente maleita espiritual e ética, com evidentes reflexos nos irrecuperáveis prejuízos paisagísticos e patrimoniais. Algumas das nossas cidades tornaram-se o prato forte de vilanagem de construtores-ditos-civis, restando para contraste e beato alimento do vereador-dito-da-cultura, um ou outro isolado edifício histórico.
Amarante é um dos mais belos e fascinantes lugares da nossa terra. O conjunto urbano que ladeia a ponte e o convento de S. Gonçalo integram-se hermoniosos numa paisagem vigorosa, composta pelo Tâmega e pelo Marão. A cidade une-os simbólica e naturalmente por indicação e pelo saber de um dos nossos maiores poetas, Teixeira de Pascoaes.
A fogosidade do Tâmega contorna pela base o enorme Marão, conferindo a esta paisagem, e a Amarante em particular, o testemunho de um enérgico e sublime diálogo da serra com o rio. Assim foi desde o princípio. Assim o viram António Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso e outros Amarantinos. Pascoaes marca o Tâmega como um ente mítico e sobrenatural. O Abade de Jazente refere a fúria das suas águas arrastando a velha ponte românica, logo substituída pela ponte actual que um dia tentou Camilo para a morte.
Augusto Casimiro, descreveu-lhe a bravura transbordante e devastadora de Inverno, que, galgando a «ínsula» e investindo com raiva contra a penedia, «punha ombros aos pilares da ponte». Amaciado pela Primavera, o Tâmega repousa «no regaço dos açudes, descendo na companhia das várzeas verdes ou de ouro, bordadas de choupos ou salgueiros.»
Segundo a lenda, S. Gonçalo, ao subir o rio, sentindo uma força especial em Amarante, bateu com o cajado no chão para que ali se edificasse o seu convento. A força fecundante do rio parece ter transvasado para o culto da fertilidade, de que são apanágio a doçaria fálica de Amarante e a fama de S. Gonçalo como casamenteiro. Agora, nas vésperas do século XXI, no Ano Internacionaldo Ambiente e ano comemorativo do centenário do nascimento de Amadeo, uma barragem já construída, pretende transformar esta força anímica e «o vale sagrado do Tâmega» num imenso lençol de águas paradas e chocas. Desaparecerão para sempre os centenários arvoredos, os rochedos, as ínsulas. Os moinhos e as poldras ficarão submersos. A um rio vivo, buliçoso e viril sucederá um lago imóvel de águas lamacentas e silenciosas, semicerrando os olhos dos arcos da ponte de S. Gonçalo, como se a letra M da palavra aMarante fosse substituída por um espesso traço horizontal, tornando-a ilegível.
Uma entidade estatal, a EDP, é impunemente responsável por um caso justificado pelas preocupações económicas. Fazemos comércio apressadamente. Negociamos facilmente a beleza eterna dos nossos lugares, onde se condensa a história e a vida deste país. Assim o Tâmega, como um gato capado, ficará a engordar de barriga voltada para o calor e a luz dos holofotes, entregue para sempre aos malefícios e às estranhas habilidades das ratazanas.
Gente de muita responsabilidade, e portuguesa, parece descomprometer-se das suas obrigações éticas, de transmitir enriquecidamente ao futuro, o que o nosso passado histórico lhe emprestou generosamente para usufruírem. A menos que se confirme ainda o que Pascoaes escreveu em 1919, em Os Poetas Lusíadas: «Somos um Povo divinamente estúpido a quem a bacharelice roubou a divindade, deixando-lhe a estupidez. Em Portugal, há meia dúzia de almas sublimes e o analfabeto labrosta das cantigas. O mais é cisco de ciência e literatura varrido das estantes parisienses.»
Durante séculos, Portugal viu o seu rosto reflectido na imensidão dos mares. A imagem era grandiosa, mesmo sofrendo as convexas deformações ou as irregularidades dos mares. Despedido das miragens, é tempo de o nosso país se reflectir de novo nos seus rios e na frescura das suas fontes.?

M.H.M

in A Phala, nº. 100, Maio, 2003.



posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, julho 02, 2003

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