terça-feira, julho 01, 2003
EPISTOLÁRIO
Carta de Teixeira de Pascoaes a Frei Bernardo de Vasconcelos
“11 de Set. 924
Amarante
Meu querido Poeta:
“A sua carta, recebida ontem, não é com palavras que se responde: mas o meu silêncio, embora contivesse os mais altos sentimentos que a minha alma lhe dedica, poderia ser interpretada como estúpida r [sic] fria indiferença. Eis a razão porque (sic) respondo à sua carta com palavras, isto é, servindo-se duma força material, duma faculdade do meu corpo. De resto, o corpo (permita que o diga) tem sido bastante caluniado! O pobre triste! O mísero servo da alma quando não seja o templo de Deus vivo, como afirma S. Paulo) sujeito a todas as dores físicas tremendas; a dor de ser queimado, esmagado, retalhado, asfixiado! A tudo se submete o pobre triste, para que a alma, na sua passagem pelo mundo, possa agir e revelar-se! É claro que a acção é, frequente [sic] vezes, maléfica; mas também é boa, de quando em quando. Que havemos de dizer dos braços que salvam um afogado, da mão que oferece sua esmola, dos lábios que pronunciam uma oração? Eu adoro a alma e não desprezo o corpo, e pão que o alimenta, e o sol que aquece e alumia. A contemplação do céu não me absorve por completo. Os meus olhos repousam encantados também na beleza das cousas naturais. Encontrar essa harmonia entre o mundo e o céu tem sido a minha perpétua ansiedade. Encontrei-a? Não, pobre de mim! O mundo está cheio de sombras e de crimes, e o céu tem muito de vago e inatingível que me tortura! Eis o meu drama, querido Poeta. O drama dum ser inferior, quase vegetal, que criou raízes na terra como as árvores e, como as árvores, ergue as romagens para o céu, hirtas e desfolhadas, num desespero!
Eu bem sei que a mais nobre atitude duma alma é atingir uma verdade divina ou a Verdade, e entregar-se a ela, por completo, repousar nela para sempre. É o seu caso e o do Ângelo e o dum outro eleito do Senhor.
Mas, ai de mim! Eu não nasci para repousar! Vim cumprir uma pena. Debato-me nas trevas, ansioso de clariadde, e pressinto, para le´m tudo (sic) as mãos do Destino que me impelem, não sei para onde nem por onde… O Destino de Deus? Deus, creio bem: a vontade inexorável de Deus que me faz viver e padecer.
Vejo que há almas como a sua que já cumpriram a pena e se libertam, e há outras ainda prisioneiras, almas de tragédia e expiação, que esperam a liberdade. Esperam e deseperam!
Gritam, enquanto as almas irmãs da sua, se evolam para Deus em orações. Porquê? Mas todos nós obedecemos! Viver é obedecer. Uns obedecem a Deus; os outros…
A sua carta iluminada de divina caridade, tocou-me no mais íntimo do coração. É a carta dum santo escrita a um pobre diabo: um raio de luz celeste despedido sobre uma triste sombra consciente da sua existência ilusória.
Ergo os olhos para si, para o seu espírito liberto. Vejo o esplendor que o transfigura, mas vejo-o desaparecer, ao longe, nas distãncias do Infinito. E, ao mesmo tempo que o admiro e amo e venero, murmuram, num tom de imensa tristeza aos meus ouvidos, aquelas palavras da sua carta: “que a minha vida seja um verso branco que eu não saiba escrever”.
Is to é sublime, na verdade. Mas, para mim, encerra uma tragédia. A máxima tragédia do silêncio. Perdoe-me o que vou dizer-lhe:
Eu preferia ouvir-lhe aquele verso…
As suas orações por mim, o seu amor e piedade pela minha humanidade feita de dor e imperfeição, ouvi-las-ei religiosamente, neste remoto escuro em que me aflijo e me consumo, e serão como estrelas cravadas num ermo espaço lutuoso. Se a bem-aventurança que Deus lhe concedeu, baixar, um dia, à minha alma, ela virá por intermédio das suas orações. Será um milagre do seu amor e da sua piedade. Vejo-o afastar-se e desaparecer, entre as quatro paredes de uma cela… Neste momento supremo da sua vida, atrevo-me a fazer-lhe um pedido a quem tudo pretende conceder-me. Peço-lhe que não reze somente. Não se amortalhe naquele verso incriado e humilde! Cante, erga a sua voz nos seus versos, que eles hão-de ser as suas mais perfeitas orações. Creia bem que Deus ouviu com mais amor os versos de Frei Agostinho que as suas Avé Marias e Padres Nossos… O canto divino redime-nos e redime os outros. A oração é mais uma conversa particular entre nós e a Divindade.
Isole do mundo a sua existência, feche-se numa cela, mas derrame nas pobres almas aflitas cá de fora, o bálsamo poético da sua alma libertada”.”
FERREIRA, P. Jorge, “Bernardo Vasconcelos o Monge Poeta”, Mosteiro de Singeverga, Edições Ora & Labora, 2002, p.p. 63-65.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, julho 01, 2003