A montanha mágica

terça-feira, julho 15, 2003

CINEMA

Esta semana na RTP 2:
Logo pelas 23h 55m: DERSU UZALA, A ÁGUIA DAS ESTEPES (1975), de Akira Kurosawa.

Quinta-feira, 23h 55m: A GREVE (1924), de Sergei Eisenstein.


DERSU UZALA – DERUSU - USARA
DERSU UZALA, A ÁGUIA DAS ESTEPES




"A recepção desastrosa que teve Dodeskaden (talvez o maior fracasso da carreira de Kurosawa) teve graves consequências na vida do realizador acabando por marear o fim de uma fase da sua carreira. Aliás esse fim é paralelo de grandes transformações nos meios de comunicação em todo o mundo, mas que no Japão teve efeitos bastante graves no campo da produção cinematográfica. A quebra no número de espectadores provocada pela televisão foi, neste país, de particular importância pois era também um de maior número de espectadores. É evidente que isto, por si só, não foi responsável pelo desastre de Dodeskaden, mas explica grande parte dele. Porém, se o drama era geral no campo da produção, para Kurosawa foi mais grave porque desde há algum tempo se assumira como produtor dos seus próprios filmes. 0 desastre de Dodeskaden representou quase a sua ruína, provocando-lhe uma depressão psicológica que o levou à beira do suicídio. Durante dois anos Kurosawa julgou-se "arrumado", tanto mais que as companhias de produção que continuavam a laborar não ousavam arriscar o seu dinheiro com as "extravagâncias" do velho "imperador". Mas em 1972 recebeu um recado do cineasta soviético Guerassimov, convidando-o a trabalhar no seu país. Desconfiado, primeiro, do sistema de co-produção, Kurosawa acabou por aceitar quando lhe foi garantida liberdade total para o seu projecto, que acabou por representar, para o realizador, um "regresso" à sua juventude, ao escolher um romance de viagens que lera em adolescente, Dersu Uzala, do capitão VIadimir Arseneiev, onde este descreve o seu encontro com um singular habitante da estepe aquando das suas viagens de exploração nas regiões do Oussouri. 0 filme foi um triunfo, conquistando o Oscar para o melhor filme estrangeiro desse ano e mareou a ressurreição de Kurosawa no plano internacional. George Lucas e Francis Coppola ajudá-lo-iam a desbloquear a produção de Kagemusha, que entretanto substituira o seu ambicioso Ran, que capitais franceses, anos depois, permitiriam que se concretizasse.
Dersu Uzala marca, portanto, o início de urna nova carreira de Kurosawa. E com ela, também, um novo tipo de preocupações, a intenção objectiva de "dizer" alguma coisa, transmitir uma mensagem. Afinal, a sua obsessão de Akahige, que terá contribuído para a desastrosa carreira do filme, afirma-se com mais força e alguns filmes como Rapsódia em Agosto só ultrapassam esse obstáculo graças a um genial sentido de mise-en-scène e à poesia das suas imagens. Dersu Uzala está marcado pelas mesmas intenções. Contudo, no seu caso, elas apenas são visiveis a um segundo nível de leitura. 0 que primeiro se destaca deste belíssimo filme é a força das imagens onde a paisagem agreste é o verdadeiro personagem e, por conseguinte, Dersu, que nos surge como uma sua emanação. Só subliminarmente (o seu destino confundido com o da paisagem, e a sua morte coincidindo com o fim daquela região selvagem) o filme de Kurosawa encena a sua "mensagem" ecológica. Antes de mais é a história de uma aprendizagem, e, deste modo, Dersu Uzala junta-se aos clássicos do realizador como Os Sete Samurais e por extensão ao western clássico. Os personagens de Dersu e Arseniev prolongam os do samurai velho e o seu jovem discípulo naquele filme, sendo o primeiro o mestre, cuja experiência lhe permite ler sinais que passam despercebidos ao outro. Mas Dersu é um personagem mais singular, com o seu marcado primitivismo e as suas crenças anímicas. Para ele toda a natureza é um conjunto de seres vivos, o fogo, a água, o Sol e a Lua, todos são "seres" sujeitos aos mesmos caprichos dos humanos e com os quais é possível dialogar, senão mesmo invectivar. É este instinto que lhe permite conhecer a taiga, mas a sua sobrevivência depende do equilíbrio e do respeito por ela. Não se mata por prazer mas apenas por necessidade, nada se destrói ou desperdiça e é preciso pensar nos outros para que esse equilíbrio permaneça (o ritual da comida, sal e fósforos deixados na cabana deserta para outro possível hóspede). Por isso, Dersu é incapaz de se adaptar à vida na cidade, para onde o leva o seu amigo Arseneiev, quando confrontado com a sua perda de visão, o início das perdas das suas faculdades de sobrevivência que, de certo modo é, para ele, como um castigo dos deuses por ter quebrado a harmonia ao matar o tigre. Incapaz de se adaptar às regras da economia de compra e venda, ele que sempre vivera num regime de subsistência e de troca, sem entender o sentido do dinheiro (a narrativa sobre o comerciante que lhe rouba o dinheiro das peles, espantando-se com o seu comportamento). Por isso, também, ele será vítima dessas regras onde impera a rapina (assassinado para lhe roubarem a espingarda de último modelo, presente de despedida de Arseneiev).
Mas a "mensagem" ecológica e a apologia do "bom selvagem" passa para segundo plano perante a grandeza da encenação e a exploração, pela câmara de Kurosawa, dos elementos naturais, em particular na excelente sequência da tempestade na taiga onde, numa corrida contra o tempo, Dersu e Arseneiev, constroem de forma rudimentar um abrigo contra o vento gelado. É um filme também, por onde passa um toque de magia, aquela que a natureza desconhecida sempre inspira nos que a cruzam, acordando instintos primordiais, em particular na fabulosa sequência do encontro de Dersu e Artseneiev, numa noite em que as chamas da fogueira constroem na paisagem figuras fantasmagóricas que se recortam nos ramos das árvores, a paisagem de uma "noite de Walpurgis (noite de bruxas) como evoca Arsenciev, antes de um ruído lançar um alerta. Algo se aproxima e um grito ecoa: "Não disparem. É um homem", diz uma voz que se verá ser a de Dersu. Naquela simples apresentação, "um homem" se concentra todo o universo, porque Dersu é a materialização da própria natureza."

M.C.F.

in AKIRA KUROSAWA, “As Folhas da Cinemateca”, Lisboa,Ministério de Cultura, 2001, p.p. 88-90.


A GREVE



"Após o êxito de Alexandre Nevsky, que repôs Eisenstein na posição que ocupava na URSS rios anos 20, e enquanto este filme voltava às prateleiras em consequência do pacto germano-soviético, o realizador encenou para o Bolshoi a "Valquíria" de Wagner, que seria apresentada ao enviado do governo germano Nazi alemão. Segundo o próprio Eisenstein, a encenação serviu-lhe para experimentar uma série de ideias novas referentes a iluminação e cor, e à relação entre os cenários e os intérpretes, que iria utilizar exaustivamente em lvan o Terrível. No fim de contas, toda a carreira artística de Eisenstein parece resumir-se a este movimento, que o leva, numa espiral ascendente, a cruzar todas as formas artísticas até culminar numa síntese que é o filme. Ela é a melhor ilustração de um aforismo famoso do próprio Eisenstein que diz que o cinema é a síntese das artes e das ciências.
A Greve ilustra também, de modo perfeito, essa evolução, embora não tenha (e naturalmente, visto tratar-se não só de uma primeira obra, e nascida do entusiasmo e de uma manifestação artística febril e agitada) a serenidade e o rigor das obras futuras. Os seus limites foram apontados pelo próprio Eisenstein no seu texto "Do teatro ao cinema": "0 nosso entusiasmo traçou uma imagem plana, sem perspectiva. Sem perspectiva porque a pintura das massas exige que, no interior da colectividade, cada um dos indivíduos seja desenvolvido ao máximo", acrescentando, para evitar confusões que "se trata duma concepção absolutamente oposta à do individualísmo burguês". Nessa direcção seguira o seu amigo Pudovkine com A Mãe.
A Greve culmina, da parte de Eisenstein, um processo onde desenvolveu todas as experiências possíveis no campo da encenação teatral. A utilização do cinema representou, primeiro, uma "revolta contra o palco". Nas suas encenações no Proletkult utilizara uma mistura de todos os elementos expressivos, a que ele chamaria a "montagem de atracções" e que incluiria também um pequeno filme exibido nas representações. Eisenstein, com o seu "desejo de adoptar princípios radicalmente novos", estava maduro para a passagem ao cinema. Com o Colectivo do Proleticult de Moscovo, de que fazia parte, Eisenstein começou a estudar a possibilidade da realização de uma série de filmes que fossem o balanço das lutas dos trabalhadores que culminaram na Revolução de Outubro, sob o título genérico de Rumo à Ditadura (do Proletariado). 0 primeiro, que seria o único a chegar a bom termo, foi A Greve, escrito pelo Colectivo sob a direcção de Eisenstem. Na sua totalidade o plano compunha-se de 7 filmes, que eram:

1) De Genebra a Moscovo;

2) Clandestinidade;

3) 0 Primeiro de Maio;

4) 1905;

5) A Greve;

6) Prisões, Motins e Evasões;

7) Outubro.

Na sua realização Eisenstein vai dar rédea solta a todas as ideias que fervilhavam naquele tempo de grande agitação artística. Com A Greve ele dá de facto início ao cinema soviético, um cinema de formas novas para um conteúdo novo. Em A Greve Eisenstein iniciou uma frutuosa colaboração com o operador Eduard Tissé que duraria durante toda a sua carreira. Tissé, de origem Sueca, fora repórter cinematográfico durante a guerra civil, tendo trabalhado com Vertov no Kino Pravda. Com Eisenstein, Tissé encontrou o companheiro ideal para levar a cabo o seu gosto pela experimentação. A Greve é. deste ponto de vista, um filme experimental, onde uma série de ideias novas são postas à prova, e alcançarão mais tarde a perfeição no Potemkin, Outubro e Que Viva México! Para já, a posição da câmara com o efeito dramático da plongée, que Pudovkine desenvolverá, de forma brilhante, em A Mãe. As sucessivas sobreposições que sublinham a passagem, ou simultaneidade de tempo transformando-se também em metáforas visuais: as máquinas que param por cima das que mostram os operários de braços cruzados; a sucessiva exposição dos denunciantes e das suas alcunhas, a raposa, a coruja, etc., com os rostos dos homens sobrepondo-se aos dos animais; o denunciante nas latrinas, e as famosas e sempre citadas sequências do limão que o patrão esmaga no espremedor e os polícias a cavalo cercando e carregando sobre os operarios e as suas famílias, ou a montagem que opõe, para sintetizar a ideia da repressão, o massacre dos operários e a morte duma rês no matadouro. Esta "montagem de atracções” que Eisenstein desenvolve a partir das experiências teatrais de acções múltiplas, vários palcos e arenas, dá origem, no dizer de Jay Leyda, a um filme “pleno de metáforas cinematográficas, e as suas imagens evocam para além das sensações visuais, os sons, os cheiros, os contactos tactéis" A Greve reforça estas sensações com uma construção em forma de sinfonia com os Allegros vibrantes do começo e do fim e o Andante breve e calmo que os separa. Esta forma musical está subjacente a esta primeira fase da carreira cinematográfica de Eisenstein que vai até ao Que Viva México!, para dar lugar à ópera a partir de Alexandre Nevsky. Entre outras experiências destaquemos também um breve momento com a imaginação das letras dos intertítulos, logo no começo, quando os problemas começam a surgir e a queda da letra parece marear o desencadeamento dos conflitos, ou aquela sequência em que as fotografias dos denunciantes e espiões da polícia se animam.
A Greve é também, e já, a materialização de ideias que culminam em Outubro. Eisenstein já neste filme recusa o herói individual para dar destaque às massas como um herói colectivo, embora neste caso ainda se sinta o peso da representação teatral do grupo do Proletkult. Mas alcança, parcialmente, um dos objectivos de Eisenstein que era "anular a intriga", encarada como forma romanceada. Primeiro grande filme de uma nova cinematografia, A Greve vai influenciar toda a nova geração de cineastas que se forma: 0 Fim de São Petersburgo de Pudovkine, presta-lhe claramente homenagem, e tanto Dovjenko como Ermler falaram da influência do filme sobre eles. Mas também A Greve sofreu, por seu lado, influências. E a mais clara é a do episódio moderno de Intolerância, filme que gozava de grande prestígio na URSS. Eisenstein diria que todo o cinema soviético nasceu daquele filme de Griffith.
As reacções ao tempo, na URSS, foram significativas: o Kino Gazeta dizia: "Os écrans da União Soviética jamais viram filme mais importante, tanto no significado ideológico, como nas suas qualidades formais". E Vertov referia-se ao filme de Eisenstein dizendo: "Com A Greve, pela primeira vez o nosso cinema criou qualquer coisa de revolucionário". 0 crítico inglês David Sylvester escreveu: "A arte deste filme evoca a de um poema que lhe é quase contemporâneo 'The Waste Land' (de T. S. Elliot). Evoca-o pela mesma ligação rítmica de imagens heterogéneas, e pelas mesmas imagens, simultaneamente naturalísticas e simbólicas, que criam o choque pela sua sobreposição".

M.C.F.

in SERGEI EISENSTEIN, “As Folhas da Cinemateca”, Lisboa,Ministério de Cultura, 1998, p.p. 11-14.

posted by Luís Miguel Dias terça-feira, julho 15, 2003

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