A montanha mágica

sexta-feira, junho 13, 2003

VOU PARA CASA - RTP 2 - 23h 55 m



"Gilbert Valence é um actor de teatro, e o seu talento e a sua carreira deram-lhe os papéis mais importantes que um actor pode desejar. Uma noite, no fim de uma representação, a tragédia irrompe na sua vida; o seu agente e velho amigo, Georges, diz-lhe que a sua mulher, a filha e o genro acabaram de falecer num acidente de viação. O tempo passa, a vida volta à normalidade. Gilbert Valence partilha agora o seu tempo entre o seu neto, que adora, e o teatro.

Algum tempo mais tarde, o seu agente propõe-lhe um papel de protagonista num telefilme com os ingredientes em moda: droga, sexo e violência. E ele zanga-se: não teve a carreira que teve para agora aceitar comprometer-se num trabalho que lhe repugna totalmente, sob o pretexto que ganhará muito dinheiro.

Mas no dia em que um realizador americano lhe propõe fazer Ulisses, uma adaptação de Joyce, ele aceita com entusiasmo. No estúdio, com a iluminação e o décor instalados, o realizador sugere um ensaio: Gilbert Valence tem algumas hesitações, algumas falhas de memória, mas isso não é muito grave: retomarão no dia seguinte. Mas no dia seguinte, em plena rodagem, o velho actor sente o mundo escapar-se-lhe, e não consegue enfrentar a realidade. O texto foge-lhe. E ele pára e diz muito calmamente: Vou para casa...


ENTREVISTA COM O REALIZADOR

VOU PARA CASA é quase uma não-história, de aparência singela como o seu título, que se passa na feérica Paris, ao despertar do ano 2000, cidade das luzes, reflexo e centro de toda a nossa complexa civilização ocidental, civilização onde o complexo parece sobrepor-se ao essencial, tal como se fosse brincadeira de crianças inocentes (imprudentes), cujo resultado pode muito bem, ou melhor, muito mal, ser uma patética e inesperada eclosão sócio-ecológica no mundo de amanhã, e onde perderia todo o sentido dizer: VOU PARA CASA. Mas não, não é isto que se conta.

O que se conta, embora o filme no seu contexto decorra num certo paralelismo entre cidade, peças de teatro, etc. (ainda que possamos não pôr de parte uma soma), o certo é que se trata de um drama-em-pessoa, sofrido por um velho e consagrado actor, vítima inocente de duma contingência traiçoeira. Poderá parecer excessiva, ou até deslocada, a proposição inicial mas, em boa verdade, devo confessar que foi dela que me veio o verdadeiro impulso para compor uma história assim tão simples.

Jacques Parsi - Ao filmar Paris, dá uma imagem dupla: por um lado, há Paris das luzes, dos cafés, das lojas de luxo, e por um outro Paris nocturno ameaçador. Porquê esta escolha? Porquê Paris?
Manoel de Oliveira - Juntando as duas perguntas, direi que a primeira dá um esboço da vida corrente da cidade, enquanto a segunda representa-a como o centro universal da cultura do ocidente, que Paris é. Logo, há nesta globalização toda uma parte luminosa e gratificante, mas também o outro lado, nocturno ameaçador, como muito bem lhe chama, e como é o da droga, o das guerras, tribais, religiosas e políticas que proliferam um pouco por todo o lado, a Leste, no Médio Oriente, em África, na Indonésia, já sem falar no que vai pela Ásia, ou como os índios nas Américas.

Jacques Parsi - Pode-se ficar com a impressão que o velho e célebre Gilbert Valence é negativo: ele diz não a Sílvia, diz não a um contrato dourado... É da experiência? É da idade? Ou é da deontologia que ele invoca è frente do seu agente?
Manoel de Oliveira - Penso que virá da sabedoria que a idade acumula. Assim como penso que a ética nunca foi negativa. Pois é dela que saem os propósitos, como não matar, não roubar, não explorar, não discriminar, etc... É ainda da ética o que está escrito no topo do plinto da Praça da República, que sustenta a estátua em bronze, e já quando a vemos de costas se lê marcado na pedra: LABOR-LIBERDADE-FRATERNIDADE.

Jacques Parsi - Ele não quer entrar num telefilme por causa das "cenas de violência e cenas de cama". No entanto, há grandes obras que contêm cenas de violência. E o "Ulisses" de Joyce foi durante muito tempo proibido por pornografia... O que é que exprime a atitude de Gilbert Valence nos dias de hoje aos seus olhos?
Manoel de Oliveira - Justamente. Respeita a sua deontologia, o que a própria personagem declara, quer como actor quer como homem. Pensará que a ética é o fundamento para a regra das relações humanas. Mas não vejo onde haja assim grandes obras-primas, confinadas à pornografia. O sexo, fonte de toda a pornografia, é cousa abissal, e esse abismo perverte e atrai o lado mais animal do homem. Desumanizando-o. Digo o lado mais animal do homem, porque entre os animais não há pornografia, nem vergonha. Enquanto no homem, o excesso porno perverte-o e faz com que se aproxime da espécie do assassínio, cuja atracção se pode assemelhar ou mesmo chegar-se a confundir com esse outro tipo de abismo. O porno e o assassínio estão fora de lei, de controle, de moral. Vem dos confins da natureza humana, e trona-se em si um absoluto. "Ulisses" de Joyce vale pelo que vale e não pela especulação pornográfica, que não é acessória ao contexto, como o não são as psico-definições que ele dá no final a certas personagens. Ambos os casos, porém, não valerão senão como exercício de sedução. E, no segundo caso, não deixa de ser o que o escritor pensa, ou quer que se pense das suas personagens. Voltando ao primeiro, este será como a necessidade imperiosa de expulsar a líbido erótica do próprio narrador. Aqui podemos encontrar razões duma premência pessoal do escritor, uma necessidade de se exteriorizar (extravasar) fora do contexto, onde, eu vou para casa ainda é o fundamento em "Ulisses" de Joyce, depois do de Homero. O que nós hoje vemos numa literatura moderna e apressada é uma multiplicação elevada à sétima potência por muitos autores oportunistas, em trabalhos repetitivos da violência pela violência e da pornografia pela pornografia, apenas por estar em moda e ser de rentabilidade fácil - o que não tem nada a ver com o que Joyce escreve. Neste, passa-se da cousa pública para o privado mais íntimo, sem contudo se misturarem. Já no caso do cinema, um realizador irreverente e tão agressivo como genial, falo de Buñuel, nunca mostrou ao vivo o acto sexual ou cenas pornográficas, cousas do foro íntimo, que outros realizadores desinibidos, ou movidos no sentido de ganharem audiências, tornam públicas, como é em especial o caso da maior parte das televisões.

Já os gregos nas suas geniais tragédias se precaviam de mostrar actos abomináveis: "Mate os seus filhos, mas não em cena", diziam. Aliás, trazer o que pertence ao privado para o que é do foro público não deixará nunca de mostrar falta de decoro. Hoje, porém, as barreiras entre um campo e outro estão de tal modo ultrapassadas (devassadas) que já não há nada que possa chocar o pagode (que é pau para toda a colher). Desde que lhe não toquem no umbigo.

Jacques Parsi - No fim, a câmara não se queda sobre Gilbert, que desaparece; ela fica por muito tempo sobre o seu neto, que até aí tinha tido apenas um papel secundário. Porque é que o colocou subitamente em primeiro plano?
Manoel de Oliveira - Porque o neto foi complementar até ali. Mas as crianças têm um sexto sentido e a percepção do desastre que lhe dá o arquétipo que ele via no avô, representante de um passado de sabedoria e de segurança que desabava diante do seu olhar estupefacto, tragédia que, consciente ou inconscientemente, a criança encaixava em si própria. Já não era só o afecto que o punha ali a ver o descalabro, mas o pressentimento de toda uma responsabilidade de vida a descer sobre ele pela mesma escada por onde o avô tinha subido e desaparecera ao cimo, derrotado.

E a vida não é um constante passar o testemunho, seja ele natural ou adquirido, roubado ou conquistado?"

in www.madragoafilmes.pt/vouparacasa/#





posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, junho 13, 2003

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