terça-feira, junho 17, 2003
POESIA
O PRIMEIRO REI DE PORTUGAL
Oleosas cartas deslizam, indiferentes à violência das jogadas e da terra cuspida. É sempre em brancas toalhas de azevinho que poisam os rituais. No calor da fogueira, pequenas pinhas como flores, ainda em inocentes bosques mansos. Nossos olhos pela noite, a revelação.
A um canto, o avô sorri quando lhe perguntam se conheceu o primeiro rei de Portugal.
NOCTURNAS PORTAS
Portas, imensas e nocturnas portas, quando o que desejamos é um rasgão luminoso.
MARK ROTHKO
Mede a tapeçaria como quem entra no santuário e quebra o espelho de uma ausência. Suas cores são um milagre. De púrpura violácea, de púrpura escarlate, de púrpura carmesim.
Assim o manto do seu encontro. Feito de romãs e sinos de oiro. Da matéria dos holocaustos.
Para José Tolentino de Mendonça
OLIVEIRA, Mário Rui de, “O Vento da Noite”, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.
O PASSARINHO DO RIO AZUL
Depois da Longa Marcha realizou-se na China, uma grande batalha contra os pássaros que exterminavam a colheita de arroz das planícies do Rio Azul. Estudantes e soldados passaram dias e noites, dispersos pelos campos da imensa região, a bater com seixos em latas e bidões ou esfregando canas de bambu, para que o ruído e o estrépito amedrontassem as pequenas ou maiores, criaturas volantes e elas, assim, não poisassem em terra. Uma enorme nuvem de pássaros assustados permaneceu no ar durante sete dias e depois, desfalecidos, caíram nos precipícios ou aforam-se nas águas dos rios. Somente um pequeno pássaro chegou a Pequim, entrando numa janela aberta do mosteiro onde, desterrados, viveram os eunucos há alguns anos. Também eles, um dia, varridos da grande prisão que era a casa imperial. Agora sobrevivia apenas um no convento. O seu último companheiro tinha morrido. Era muito velho, pois ainda tinha servido a mãe imperatriz, Tseu-hi, morta em 1909. Foram quatrocentos os eunucos e agora restava apenas um. Aquele passarinho vem poisar, precisamente, no bordo da sua tigela de arroz. E então, vendo talvez nestas penas a sua antiga patroa, com gestos humildes e reverentes, volta a servir. Abre o bico do pássaro e mete-lhe um grão de arroz. Assim, até perceber que estava saciado. E depois adormeceram, ele sobre a esteira e o passarinho a seu lado, mortalmente cansados.
A POESIA MAIS BELA
Lá para os lados de Torre Pedrera, um poeta de província, na tarde de 14 de Julho de 1969, adormeceu numa praia. Sonhou que Dante lhe mostrava o seu poema mais belo.
Sou um homem solitário
como uma árvore
dentro de uma árvore sentado
Era um poema que nunca tinha escrito.
GUERRA, Tonino, “Histórias para uma Noite de Calmaria (trad. Mário Rui de Oliveira), Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p.p. 43 e 49.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, junho 17, 2003