sexta-feira, junho 27, 2003
PINTURA
Retrato do Papa Paulo III com Dois Netos
Por JOÃO BÉNARD DA COSTA
Público, Sexta-feira, 20 de Junho de 2003
"3 - "Toda a pintura deve contar uma história", dizia Alberti. Nenhum pintor as contou melhor que Tiziano. Em 1543, Tiziano pintara Paulo III, no auge do seu pontificado, noutro retrato célebre de Capodimonte. Em 1546, durante a segunda e última visita do pintor a Roma, o Papa não lhe pediu retratos, mas o cardeal, seu neto e seu homónimo, insistiu em ser imortalizado por ele. Primeiro, pediu-lhe um retrato onde está sozinho, e onde foi pintado a meio corpo. Se o retrato (outro Tiziano de Capodimonte) é esplendoroso, é visível que o retratado não consegue competir com a púrpura das vestes.
Dúvidas houvesse, elas terminariam no retrato de família, também uma encomenda do neto. À esquerda, em pé, dedo em riste, ele tudo cuidou e tudo dispôs para ser a figura central, permitindo-se até dominar o avô, sentado. É o único que fita o espectador, enquanto o Papa e Ottavio praticam sem nos fitar. Mas Tiziano pintou outra pintura sob ou sobre a pintura encomendada. Como Paulo III e o futuro duque conversam, o cardeal ficou isolado, afastado do grupo. O Papa vira-lhe ostensivamente as costas e parece apenas prestar atenção ao neto mais novo, seu neto favorito. Olhando atentamente o quadro, é crescente a impressão que o cardeal está "off", pertencente a outra história. Já desaparece no escuro corredor da História. Numa análise célebre, Panofsky chamou a atenção para a pêndula (versão "miniaturizada" do relógio mecânico) que está quase no limite do quadro, junto ao cardeal. "Tempus edax rerum", "o tempo devorador de todas as coisas". E o primeiro a ser devorado foi o cardeal.
Mas foi também Panofsky quem falou de "uma acção física e de uma tensão emocional", até este quadro desconhecidas no reino do retrato.
A reprodução, aqui, não vale. Mas quem viu o original jamais esquecerá o olhar do velho, de uma lucidez cortante, como se não se conformasse com a inépcia de tais netos para o continuarem. Se ignora o cardeal, desconfia da elegância do duque, "cujo movimento obsequioso, quase rastejante, lhe confere o aspecto perigoso e imprevisível de uma mola tensa, aproximando o requinte do seu manejo, elegante e silencioso, do movimento dos felinos". O Papa sabe que vai morrer, que a sua obra está ameaçada (Carlos V forçou-o a interromper o concílio), mas sabe também que nenhum dos seus ambiciosos netos tem tamanho para a altura a que aspiram. Este retrato de família é um retrato de solidão. Este retrato de poder é um retrato de Lear, um Lear ainda mais trágico porque não se deixou enganar e não tem campo para a imensidade da sua visão.
4 - Há quantos anos, há quantos anos, sonhava eu ver-me na frente deste retrato inaudito, que não pára de contar histórias e é história da sua cena?
Os grandes pintores - disse um dia Tiziano - só precisam de três cores: o preto, o branco e o encarnado. O branco é o branco do Papa (a barba, o arminho, o interior da manga, a sotaina). Algo perpassa dele para as pernas de Ottavio, o neto amado, o neto traidor. Por isso, fora os sapatos, as meias, a gola e a pluma, tudo nele é castanho, cinzento ou preto, como castanha, cinzenta e preta é a cortina imensa que o jovem afastou para entrar. Mas a cor dominante é o encarnado, os vários tons de encarnado, que permitem também ver este quadro como uma premonição do impressionismo, ou, se não quisermos ir tão longe, do que Vélasquez fez das vestes de Inocêncio X no retrato das obsessões de Bacon.
Podem-se ficar horas só a olhar para o "camuccio" do Papa ou para o quase cor-de-rosa dos sapatos. São as graduações de encarnado que contam a história da traição, como se Tiziano adivinhasse com elas (ou nelas) o que se passou três anos depois e indirectamente foi causa da morte de Paulo III. Foi quando os netos o traíram em Parma e os dois Alessandros - o Papa e o cardeal - se viram pela última vez, no mais terrível dos encontros. Será esse afinal o encontro que Tiziano pintou?
Eu já tinha visto Carlos V na batalha de Mühlberg. Agora vi Paulo III, Papa Farnese, na Villa Carafa, em Roma. Abandonando-a, pouco depois, Tiziano escreveu a Aretino que nunca mais visitaria a cidade papal. "Vi em Roma o mais terrível." Foi isto que ele viu? Vê-se tanta coisa, pensa-se tanta coisa."
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, junho 27, 2003