sexta-feira, junho 27, 2003
LITERATURA
“Na maioria dos casos, a condição primordial da felicidade não consiste, decerto, em resolver as contradições, mas sim em fazê-las desaparecer, da mesma forma que se fecham os espaços nas longas avenidas. Assim como as relações visíveis se deslocam perante os nossos olhos, de maneira a formar-se uma imagem aparente em que as coisas mais próximas, iminentes, parecem grandes, mas em que, mais longe, até as coisas enormes se afiguram pequenas e o todo, enfim, se arredonda e aperfeiçoa completamente, assim também as relações invisíveis se deslocam mercê da inteligência e do sentimento, de modo a formarem inconscientemente qualquer coisa no interior da qual nos sentimos à vontade. É precisamente essa operação, pensou Ulrich, «que não consigo realizar como deve ser.»
Ficou um instante parado, numa grande poça de luz que lhe cortava o caminho. Talvez fosse esse clarão aos seus pés, talvez fossem também as árvores, nuas como vassouras, aos lados, que lhe avocaram, de súbito, uma rua de aldeia e veio acordar nele aquela monotonia da alma, hesitante entre a plenitude e a futilidade particular ao campo, que, desde a sua primeira aventura juvenil o incitara por mais de uma vez a repetir a tentativa. «tudo se torna tão simples», cogitou. «Os sentimentos adormecem, os pensamentos destacam-se uns dos outros como as nuvens após a tempestade e, de repente, a alma transforma-se num lindo céu límpido e azul! Mas se uma vaca surge de repente à beira da estrada, em face deste céu – o acontecimento é tão vivo que nada tem do outro mundo! Porém se uma nuvem peregrina fizer o mesmo sobre aquela zona, a erva escurece, um momento depois brilha de novo, nada se passou de extraordinário, e foi, no entanto, como que uma travessia de uma margem do oceano para a outra! Um velho perde o seu último dente: essa pequena ocorrência faz, na vida de todos os seus vizinhos, um corte, ao qual podem ligar as suas recordações! Os pássaros cantam todas as noites da mesma maneira, por cima da aldeia, quando vem o silêncio que acompanha o pôr do Sol: de cada vez é um acontecimento novo, como se o mundo não contasse mais do que sete dias de existência! No campo, os deuses descem ainda até aos homens, ali ainda somos alguém, ainda vivemos alguma coisa! Na cidade, onde surgem mais de mil acontecimentos nem sequer nos encontramos em estado de os relacionar connosco: assim começa a progressiva abstracção da vida, em que tanto se fala…»
Enquanto pensava isto sabia que esta evolução confere ao poder do homem uma extensão mil vezes maior; mesmo que a dilua dez vezes nos pormenores, ela cresce cem vezes no seu conjunto. Portanto ele não encarava a sério qualquer espécie de regresso. Veio-lhe de repente à ideia (tratava-se de um desses pensamentos à primeira vista deslocados e abstractos, que assumem muitas vezes na vida um significado imediato) que a lei dessa vida a que aspiramos, sobretudo quando nos vemos sobrecarregados de tarefas e sonhamos com a simplicidade, não era mais do que a lei da narração clássica! Dessa ordem simples que permite dizermos: «Depois disto passado, aconteceu isto!» Éa sucessão pura e simples, a reprodução da diversidade opressora da vida sob uma forma unidimensional, como diria um matemático, que nos tranquiliza; o alinhamento, ao longo de um fio, de tudo quanto se passou no espaço e no tempo, esse famoso «fio da narrativa», precisamente, com o qual acaba por se confundir o fio da vida. Feliz daquele que consegue dizer: «Quando», «Depois de», «Antes de»! Pode também acontecer-lhe alguma fatalidade, ver-se envolvido nos piores sofrimentos: desde que seja capaz de reproduzir os acontecimentos na sucessão do seu seguimento temporal, ele sente-o tão bem como sente o sol a brilhar sobre o seu ventre. Foi disto que o romance soube tirar um hábil partido; tanto faz que o viajante siga a cavalo através dos campos sob chuva a potes, como faça estalar neve debaixo das botas, o leitor está sempre confortável. Isto seria difícil de compreender se essa eterna habilidade de prestidigitação da arte narrativa, à qual até as amas recorrem para acalmar as criancinhas, se essa «perspectiva da inteligência», esse «encurtamento das distãncias» não fizesse já parte integrante da vida. (…)
Quando recomeçou a andar, enriquecido com esta descoberta recordou-se de que Goethe escrevera num ensaio sobre arte: «O homem não é um ser que ensina, mas sim um ser que age, vive e é eficiente!» Encolheu respeitosamente os ombros. «Se acaso o homem consegue hoje esquecer o pano de fundo brumoso da doutrina, da qual dependem todas as suas actividades, fá-lo, quando muito, como o comediante que ao tomar consciência do cenário e do esgar que faz, imagina estar a agir na realidade!» pensou. “
MUSIL, Robert (trad. DR. Mário Brga), “O Homem sem Qualidades”, II Vol., Lisboa, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s.d., p.p. 411-413.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, junho 27, 2003