A montanha mágica

quarta-feira, junho 11, 2003

LITERATURA

“A moral do nosso tempo, digam lá o que disserem, é uma moral de produção. Justificam-se bem cinco falências mais ou menos fraudulentas desde que a quinta seja seguida de uma época de prosperidade e de benefícios. O êxito pode fazer com que se esqueça tudo. Quando se atingiu uma situação na qual se podem consentir subvenções e comprar obras de arte, do mesmo modo se consegue a indulgência do Estado. Neste tipo de contrato, existem cláusulas não expressas: quando alguém dá dinheiro em benefício da igreja, das obras ou dos partidos, bastar-lhe-á gastar um décimo, quando muito, do que se deveria despender se resolvesse provar a sua boa vontade favorecendo as belas-artes. Além disso, há limites impostos ao êxito: não se pode o que quer que seja de qualquer jeito; certos princípios relacionados com a Coroa, a Nobreza e a Sociedade exercem sobre «o homem novo» uma espécie de travão. Por outro lado, na sua qualidade ser suprapessoal, o Estado adopta francamente o princípio de que se pode pilhar, massacrar e enganar se daí advier poder, glória e civilização. Não pretendo, claro, que isto seja reconhecido teoricamente: teoricamente tudo fica no vago. Mas estou a revelar-te apenas factos inteiramente comezinhos. Quanto a estes factos, a argumentação moral não passa de mais um meio para atingir seus fins, um meio de combate a que se recorre com tanta frequência como à mentira, assim nos aparece o mundo criado pelos homens e eu bem gostaria de ser mulher, se as mulheres… não amassem os homens! Hoje passa por bom tudo o que nos dá a ilusão de ter qualquer finalidade: essa convicção é aquilo a que tu chamaste «o homem que voa sem remorsos», e aquilo que eu descrevi como um problema insolúvel por falta de método. Mercê da minha formação científica tenho em todas as situações a sensação de que os meus conhecimentos são incompletos, não passam de simples apontamentos e que amanhã eu poderia fazer uma nova experiência que me levasse a pensar de forma diferente da de hoje. Por outro lado, o homem inteiramente entregue ao seu sentimento, o «homem em ascensão», tal como tu o imaginas, avaliará também cada uma das suas acções como um degrau destinado a elevá-lo mais ainda. Existe portanto no nosso espírito e a nossa alma algo que se deveria chamar uma «moral do passo seguinte», mas será apenas a moral das cinco falências? A moral de empreendedores da nossa época penetra assim tão profundamente em nós, ou não passará de uma ilusão de coincidência? A moral daqueles que fazem carreira não será apenas a caricatura, antecipada, de fenómenos mais profundos? Para já não posso dar-te qualquer resposta a estas perguntas! (…)

- Mas se tu me pedisses para eu apresentar uma coisa sob qualquer forma, preferia não ter moral nenhuma – acrescentou ela.
- Ainda bem! – exclamou Ulrich – sempre que considero a tua juventude, a tua beleza, a tua força, e te oiço dizer que não tens energia nenhuma, congratulo-me! A nossa época transborda de energia. Só conseguimos ver actos e nenhum pensamento. Esta energia terrível provém de não termos nada em que nos ocuparmos. Interiormente, quero eu dizer. Mas afinal, o homem não faz mais do que repetir, durante toda a vida, um só acto: ingressa numa profissão e progride nela. Acho que vamos encontrar aqui a pergunta que me fizeste lá fora. É tão simples ter força para agir e tão difícil encontrar um sentido para a acção! Hoje muito pouca gente compreende isto. Por isso os homens de acção se assemelham a jogadores de berlinde que assumissem as posições de Napoleão para derrubar nove mecos de madeira! Não me admiraria até que acabassem por chegar a vias de facto, unicamente para ver passar por cima das suas cabeças este mistério incompreensível: ou seja que todas as acções do mundo nunca são suficientes! – Começara a falar com paixão, depois tornara-se sonhador, calando-se mesmo por instantes, finalmente limitou-se a erguer os olhos e a sorrir. – Explicas-me que se exigisse de mim um esforço moral eu ficaria desiludido. E eu digo que se tu exigisses de mim conselhos de moral era eu quem te desiludiria. Acho que nada temos de concreto a exigir uns dos outros, quero dizer, todos nós; de facto nada temos a esperar dos actos uns dos outros, devemos sim criar primeiro as permissas: é esta a minha opinião!” (…)

MUSIL, Robert, “O Homem Sem Qualidades” (trad. DR. Mário Braga), Vol. I, Lisboa, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s.d., p.p. 477 e 478.

posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, junho 11, 2003

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