terça-feira, junho 17, 2003
LITERATURA
“Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando se manifestam e apontam a extraordinários destinos. A Calábria é um desprezado retalho do mundo; mas tem dado salteadores de renome. Toda aquela Itália, tão rica, tão fértil de pintores, escultores, maestros, cantores, bailarinas, até em produzir quadrilhas de ladrões a bafejou o seu bom génio! Aí corre um grosso livro intitulado Salteadores Célebres de Itália. É ver como debaixo daquele céu está abalizada em alto ponto a graduação das vocações. Tudo grande, tudo magnífico, tudo fadado a viver com os vindouros, e a prelibar os deleites de sua imortalidade. Schiller, Victor Hugo, Charles Nodier, se fada má lhes malfadasse o berço em Portugal, teriam de inventar bandoleiros ilustres, a não quererem ir descrevê-los ao natural nos pináculos da república. Apenas um salteador noviço vinga destramente os primeiros ensaios numa escalada, sai a campo o administrador com os cabos, o alferes com o destacamento, o jornalismo com as suas lamúrias em defesa da propriedade, e a vocação do salteador gora-se nas mãos da justiça. Faltava o fio eléctrico para tolher que vinguem os génios espicaçados pelo amor ao dinheiro amuado nas arcas dos proprietários, inimigos de empresas industriais e da circulação monetária, artéria de primeira ordem na prosperidade de um país. Faltava o telégrafo para matar à nascença as iniciativas auspiciosas. Apenas lá das povoações serranas desce à vila ou cidade a nova dum roubo, o arame palpita de horror, e a cara do ladrão é para logo litografada na fantasia de todos os esbirros sertanejos. A civilização é a rasa da igualdade: desadora as distinções; é forçoso que os bandoleiros tenham os mesmos tamanhos, e roubem civilizadamente, urbanamente. Ladrão de encruzilhada, que traz o peito à bala e o bacamarte apontado ao inimigo, esse há-de ser o bode expiatório dos seus confrades, mais alumiados e aquecidos do sol benéfico da civilização. Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo. Os daquela escola tropeçam nas honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que lhes rojam em venal humilhação; os outros quando escorregam, acham-se encravados nos artigos 343, 349, 87, 433, 351, e mais cento e setenta artigos do código penal.
Diz algum tanto como exemplo desta lastimável anomalia a história de José Teixeira da Silva do Telhado, o mais afamado salteador deste século.
Vulto de romance não o tem, porque neste país nem se completam ladrões para o romance. Disse-me uma dama francesa de eminente espírito, que em Portugal era a natureza, o céu e o ar que faziam os romances. Nem isso, minha senhora. Aqui anda sempre o gume do prosaísmo a podar os rebentões da natureza, mal eles infloram. Frutos de servir para a novela, levantada da comezinha chaneza dum conto à lareira, nem mesmo os deixam amadurar na fama e nas façanhas de um salteador.” (…)
BRANCO, Camilo Castelo, “Memórias do Cárcere”, Lisboa, Parceria António Maria Pereira Livraria Editora, Lda, 2001, p.p. 329-330.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, junho 17, 2003