A montanha mágica

sábado, junho 28, 2003

CONTO

Obrigado, Nelson de Matos



O ENCONTRO

Vergílio Ferreira (1916-1996)

“AGORA A SERRA DESCIA A TODA A PRESSA para a aldeia. Depois, tranquila, alastrava devagar num grande vale, para subir ainda, suvemente lá ao longe. Quebrado de cansaço e quase de surpresa, o engenheiro parou um instante no alto de um penhasco, soprando o fumo largo do cigarro, olhando em roda o silêncio da tarde. Um grande vento de solidão e montanha embatia-lhe no peito, inchando-lhe a camisa desapertada, penetrando-o de grandeza e de um incerto pavor. Mas logo reagiu, metendo o passo batido pelo caminho pedregoso que se lhe abria adiante, resvalando pesadamente no cascalho. De um e de outro lado, num pavor de precipícios, duas ribeiras iam fugindo para o vale, longo tempo acompanhadas por filas de arvoredo que lhes caminhavam à beira. (…)

O Sol tombava já para as bandas do rio e o Gomes e o Coelho passeavam já, de cigarro aceso, ao longo da estrada quente. Até que os dois rapazes chegaram, carregados, mas frescos, como se tivessem dado apenas um passeio, conquanto o colete os abotoasse até acima e as ceroulas lhes prendessem as pernas com atilhos.
- São de bronze, vocês.
Ergueu o sobrolho num sorriso envolvente, falando todavia só para um, talvez por ser o mais velho, enquanto o outro, devagar, descarregava a mira e o tripé.
- A gente está habituada, Senhor Engenheiro. A vida da gente é bater mato.
Se bem que engenheiro tivesse reparado no riso transversal do moço, no olhar lento que trocara com o irmão, não se impressionou. E, com um gesto breve, disse apenas:
- Ponham aqui dentro. Ali.
O mais velho tomou outra vez a mira, o mais novo pousou a caixa com o teodolito. O engenheiro passou então o lenço pela testa, batendo ainda as botas cansadas pelo lajedo largo do balcão, para sacudir a poeira. Mas qundo os rapazes disseram «passe muito bem», apontou subitamente um dedo ao mais velho, numa resolução decisiva:
- Venha cá acima.
Embaraçado, o mais novo ficou-se a vê-los subir e resolveu-se enfim a esperar.
- Senhora Maria! Água quente! – berrou o engenheiro já do meio da escada. (…)

- Água quente, Senhora Maria?!
Abriu então a varanda e viu os dois irmãos olharem ainda atrás, lá de longe, ao dobrar da esquina. Diabo! Pois não estaria o caso arrumado? Ao menos por então? De resto, havia já um mês! Ah, que se se apanhasse em Lisboa. Farto de aldeia, caramba! Farto!
Ao alto ia esmorecendo o azul do céu, de baixo vinha o grulhar de uma das ribeiras, bandas de pinheiro amedrontavam de sombra toda a lergura da encosta. Na tarde sufocante, subia agora dos balcões da vizinhança um ruído cansado de conversas. E já tranquilo, com delícia, desapertando toda a camisa, o engenheiro enterrava os dedos nos cabelos do peito, quando de novo o assaltou a ânsia forte de Lisboa. Lembrou o Arcádia, a inglesa loura soprando novelos de fumo, de joelho atirado à frente por uma brecha do vestido. Ah, fora uma noite em cheio. Ela esperava o marido que tinha ido a Gibraltar com um carregamento de conservas.
- Hello, Helen! Tonight you are very very beautiful.
Era uma inglesa escolar, moída com esforço, mas a bela loura achara graça. Prometera voltar em Agosto… Arre, que já não podia mais. Veio de novo ao alto da escada, furioso:
- Essa água, caramba!
- Já vai, olha que coisa. Dê tempo ao tempo. Ora a fidalguia… (…)

Pareceu-lhe no entanto, ao entrar na Sociedade, que a malta do andar de baixo o olhara de um modo estranho. Por isso, a meio da escada, quando a impressão se lhe agravou ma´s nítida, volveu atrás, devagar, e atravessou o salão. Pôde então ouvir-se claramente a si próprio:
- Uma caixa de fósforos.
Voltou-se: os mesmos olhares trocados, as mesmas palavras oblíquas. Procurou rir galhardamente, com segurança:
- Ena! Parece que entrou o rei! À vontade, camaradas. Senhor Francisco: aí uma rodada a esta gente. Leve depois a conta. (…)

O engenheiro foi-se acomodando de camisa aberta, bateu largamente as palmas e, enquanto acendia o cigarro, contou que nesse dia andara pelos limites do Churrasco:
- Uma estopada amigo Gomes. Trago os pés que nem cepos.
- Foi dar-lhe. Isto quem não está habituado … Uma, duas, três, quatro, cinco; uma, duas, três … Isto são caminhos de cabras. Só quem já nasceu aqui.
Todos sorriram paternalmente para aquele corpo mimoso assim massacrado pela violência da montanha. Mas o engenheiro não gostou:
- Pois engana-se o meu amigo. Já fiz marcha de trinta quilómetros e mais.
O outro porém, sorridente, não se dava por convencido:
- Pois sim, não digo que não. Mas isso é outra coisa. Estradas direitas, caminho franco. Agora a serra … Quantas quer o Senhor Engenheiro?
E o engenheiro bateu o best na mesa, numa temeridade:
- Quatro! (…)

Tipos reles. Ah, Lisboa! Nascera na capital, criara-se na capital, mulheres havia-as aos centos. Para o inferno a Silvicultura, os levantamentos topográficos, aquela terra de bestas. Porque ele era um homem, não usava arma nenhuma e estava habituado a discutir tudo de frente. Tinha ali dois pulsos duros, treinados no boxe, no remo, prontos para uma porrada leal. Mas aqueles selvagens eram traiçoeiros, atacavam pelo escuro das noites, não tinham sequer a coragem de discutir claramente, para que uma pessoa enfim soubesse quando é que os tinha na mão. (…)

Calma, todavia, que diabo. Ao primeiro que lhe saltasse, era fácil entrar-lhe de bota ao estômago. Só não podia compreender poque é que aquelas bestas se metiam na vida dele. Era uma coisa absurda. Fizera justamente essa pergunta ao Gomes, quando este lhe tocou no assunto.
- Porque é, não sei. São assim. Lá têm as suas razões. É preciso saber lidar com esta gente, e o Senhor Figueiredo tenha cuidado. (…)

Soergueu-se, bruscamente, apoiado na mão aberta, o corpo todo em tremor. Mas ela vinha lenta, suspendendo-se algumas vezes, de ouvido agudo à escuta.
- Deita. Não há ninguém.
A rapariga, porém, sentou-se apenas e correu-lhe a mão pela testa:
-Vem a suar.
- Deita. (…)

- João! – disse bruscamente o mais novo, pondo-lhe a mão no ombro. – Achas que eu trabalhei muito mal?
O outro afastou-se da guarda da ponte, pôs-se. Tirou um cigarro do bolso, procurou fósforos, pelas algibeiras, estendeu atrás um braço ao irmão:
- Dá aí lume.”

Os Melhores Contos e Novelas Portugueses, Escolha de Vasco Graça Moura, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 2003, p.p.351-361.

posted by Luís Miguel Dias sábado, junho 28, 2003

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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