quinta-feira, junho 05, 2003
CINEMA
A propósito da exibição hoje, na Casa das Artes de Famalicão, do filme Senso de Luchino Visconti, que a Cristina Fernandes da Janela-Indiscreta, já mencionou, aqui fica um excelente texto sobre o filme, retirado do belíssimo álbum que a Porto 2001 editou.
“Estamos a 27 de Maio de 1866: no teatro La Fenice de Veneza apresenta-se Il Trovadore. O espectáculo dá azo a uma manifestação irredentista durante a qual o patriota marquês Ussoni desafia em duelo o tenente Franz Mahler. Para ajudar Ussoni, a condessa Livia Seroieri, sua prima, também ela liberal embora casada com um fiel súbdito imperial, contacta com Mahler. O tenente deiste do duelo mas Ussoni é exilado. Livia apaixona-se por Mahler e torna-se sua amante. Quando este a abandona, ela procura-o por toda a Veneza. Vigiada pelo marido, dirige-se a um encontro; mas, em vez do amante, encontra o primo que lhe entrega o dinheiro recolhido para a insurreição. Quando a guerra rebenta, os Serpieri transferem-se para Aldeno. Uma noite, Franz introduz-se no quarto de Livia e pede-lhe dinheiro para corromper o médico e sair do exército. Livia entrega-lhe o dinheiro dos patriotas. Trava-se a batalha de Custoza: temendo uma vitória italiana e, portanto, a separação do amante, Livia junta-se a Franz em Verona. Mas Mahler, que se encontra com uma prostituta, recebe Livia com desprezo. Ferida no seu orgulho, a condessa vinga-se denunciando-o como desertor. De noite, enquanto os austríacos festejam a vitória, Franz é fuzilado.
Porque razão Senso é considerado, talvez, o momento cinematográfico mais alto de Visconti, certamente a sua obra mais sincera e urgente? Porque conseguiu resolver, quase completamente, o seu íntimo e constante conflito entre a inata vocação decadentista e negativa (parente espiritual, nisto, de Stroheim) e o seu historicismo marxista pragmático. A disposição para a crueldade; o desapego, o desamor, até, pelos próprios personagens, o desepero romântico levam-no à beira de um expressionismo teatral (parente espiritual do último Eisenstein), o mesmo historicismo, o mgosto pelo melodrama, encontram em Senso uma matéria ideal. Em Visconti, mestre do negativo, as personagens positivas são apenas, e sempre, conseguidas quando se destinam a uma derrota como La terra trema ou em Rocco e i suoi fratelli. O marquês Ussoni surge aqui apagado e incompleto, dialecticamente necessário apenas em abstracto no filme que Visconti teria querido fazer e não no que fez e que além disso, a censura depois mutilou, eliminando uma sequência bastante importante, pelo menos para o discurso ideológico que o realizador queria desenvolver. Até mesmo os defeitos de que uma parte da crítica apontará ao filme são, em grande parte, traços típicos da obra viscontiana: as complacências formalistas, a sobrecarga cenográfica, certas irritações perturbadoras impostas aos actores (sobretudo a Valli), os saltos na análise psicológica (sobretudo na parte inicial da ligação amorosa, ou então, no último encontro entre os dois amantes, a reacção demasiado tardia de Livia à provocação injuriosa de Franz), os maneirismos intelectuais do diálogo (imputáveis, sem dúvida, a Tenesse Williams), as incoerências históricas (Mahler que vaticina, com meio século de antecipação, o fim do império austríaco). Quer o vejamos como um melodrama social, como acreditamos que é, ou como um romance realista articulado (simultaneamente descritivo e crítico), o valor de Senso é, todavia, dificilmente contestável.
Ritmado com a medida certa do ímpeto túrgido e tardo-romântico da 7ª Sinfonia de Bruckner, apoiado por uma excepcional dignidade cromática, o drama de Livia Serpieri e de Franz Mahler (e os seus famosos duetos) desenvolve-se implacavelmente com a peremptória necessidade de um melodrama que se faz tragédia e que tem na conclusão a confissão mais impetuosa do seu romantismo: é bem eloquente o fuzilamento expedito, rápido, quase de crónica de Franz – figurativamente uma página de Gpya. (…) Muito se tem escrito sobre as cores de Senso, sobre a assimilação cultural de uma certa pintura romântica (Hayez) e realista italiana. (Fattori e os montanheses florentinos); sobre o seu uso ora com função psicológica, ora épica, ora apenas descritiva; sobre as diferenças entre Aldo e Krasker (se o inglês se pode gabar dos interiores da viagem de caleche, só se lhe pode atribuir o êxito parcial, um pouco oleográfico da sequência nocturna veneziana e os resultados tecnicamente valiosos mas não excepcionalmente expressivos da Fenice). Podemos acrescentar que, ao contrário de outros filmes, embora cromaticamente admiráveis, dos anos 50 (Giulietta e Romeo de Castellani, Le Carroce d`or de Renoir), nos quais a cor é estática e plana, estilizada ao longo das imagens, a cor de Senso é dinâmica. É uma cor de profundidade: consegue explorar, através do uso da luz com função dramática, a vasta gama dos tons e dos semi-tons, intensificando assim a ressonância emotiva da narrativa e representa, como escreve Emílio Cecchi, ´uma verdadeira conquista da perspectiva atmosférica`.
Que lugar ocupa Senso na carreira de Visconti e no panorama do cinema italiano? Podemos dizer que está para La terra trema como Ivan o terrível está para O couraçado Potemkin, no âmbito da obra de Eisenstein. É a recapitulação (se não um retorno) da fase cinematográfica a que chamaram ´da terceira via`e à qual pertencem, para além de Ivan o terrível, Henrique V, Les enfants du paradis, Miciurin.
Como diz Brunello Rondi, com Senso, não temos uma visão orgânica da realidade, mas ideias orgânicas sobre a realidade: ´A Visconti, efectivamente, escreve Rondi, não interessa o “olhar” sobre a realidade, abertura com uma perspectiva objectiva, o sentido vivo do quotidiano, mas sim o tocar em pleno uma situação que “emprenha” a obra sem quase deixar resíduos`. O seu filme não é uma continuação e um desenvolvimento do neo-realismo, coloca-se, sim, com plena consciência ideológica e formal, no âmbito de um realismo tradicional e romântico, representado, mas com uma perspectiva crítica. Daí o seu profundo esplendor de trenodia.
(M Morandini, Senso: melodramma e tragedia, in AA. VV., L`opera di Luchino Visconti, Actas do Convénio de Estudos, Fiesole, 27-29 de Junho, 1966)”
VISCONTI, Violência e Paixão: Os filmes de Luchino Visconti, Porto 2001, p.p. 257 e 258.
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posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, junho 05, 2003