terça-feira, junho 17, 2003
CINEMA
Hoje, pela 01h30, no canal Hollywood, Deserto Vermelho, de Michelangelo Antonioni e Tonino Guerra.
Giuliana - “- Conheci uma rapariga.
Corrado - Onde?
- Lá.
- No hospital?
- Estava muito mal. Queria ter tudo.
- Tudo o quê?
- O médico disse-lhe que devia aprender a amar. A amar uma pessoa, ou uma coisa. O marido, o filho, um trabalho, talvez até um cão. Mas não. Marido, filho, trabalho, cães, árvores, rios…
- Não te disse o que sentia?
- Sentia que lhe faltava o chão. Tinha sempre a impressão de estar a escorregar por um plano inclinado, de ir para baixo, de estar quase a afogar-se. E de não ter nada.
- Nem o marido?
- Não, nem o marido. E além disso o marido não estava…
- Nem sequer o filho?
- Ele sim. Mas esta rapariga não tinha filhos. Quando saiu do hospital estava em tal estado que se perguntava quem era. Precisava que alguém lhe explicasse. Eu. Agora está curada.” (…)
Filho – “Porque é que não me contas uma história?
Mãe (Giuliana) – Já contei todas as que sei.
- Então conta-me a de ontem.
- Qual?
- Aquela da praia.
- Ouve, não queres descansar um bocado? Depois conto-te.
Era uma vez uma menina que vivia numa ilha. Aborrecia-se de estar com os crescidos, e as crianças da idade dela metiam-lhe medo pois brincavam aos crescidos. Por isso estava sempre sozinha, entre os albatrozes, as gaivotas e os coelhos selvagens.
Tinha descoberto uma pequena praia longe da aldeia, onde o mar era transparente e a areia cor de rosa. Gostava muito daquele canto. A natureza tinha cores lindas, e não havia barulho. Ia-se embora quando o sol se punha.
Uma manhã, apareceu um veleiro no mar. Os barcos que passavam por ali eram diferentes. Mas este era mesmo um veleiro. Daqueles que correm os mares e as tempestades de todo o mundo. E também quem sabe, fora do mundo.
Visto de longe, parecia esplêndido. Mas, visto de perto, parecia misterioso. Não se ouvia ninguém a bordo. Parou alguns minutos, e depois começou a virar e afastou-se. Silenciosamente, como tinha chegado.
A menina estava habituada às coisas estranhas dos homens e não se admirou. Mas, quando voltou à beira-mar, eis que…
[ouve-se cantar]
Um mistério ainda vá, mas dois já são demais. Quem cantava? A praia estava deserta, como sempre. Mas a voz estava lá. Ora perto, ora ao longe. A certa altura, parecia que vinha do mar.
Numa pequena baía, havia muitas rochas. Não se tinha apercebido, mas pareciam de carne. E a voz, naquele ponto, era muito doce.
Filho – Mas quem é que cantava?
Mãe (Giuliana) – Cantavam todos. Todos.” (…)
in Deserto Vermelho.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, junho 17, 2003