quarta-feira, junho 18, 2003
AGRADECIMENTO
Obrigado MEC.
FÉRIAS
"Entre os símbolos mais sugestivos das férias portuguesas, a gigantesca casca de melão meia-enterrada na areia, a plurissecular marmita de Papin que guarda o arroz de grelos da gula mais-que-cega das gaivotas e o barulho macaense de cartas «elefante Branco», completamente espaçado (à deslumbrante e impecável excepção dos oito, nove e dezes) ocupam lugares sobremaneira privilegiados.
Nada há, porém, de mais sugestivo que o dia da partida de uma típica família portuguesa para férias.
Quando o Sr. Antunes, típico português, entra em férias, vem sempre de chanatas, panamá e «fato-treino Freddy Perry». Às costas traz, na medida do possível (em Portugal esta medida é, como se sabe, muito grande), a casa inteira. Um português é, por definição, um ser apegado ao lar. É por isso que, quando vai para férias, não gosta de deixar o lar em casa.
A fase de preparação para a partida é sempre importante. Durante alguns dias, o sr. Antunes dedica-se afanosamente ao trabalho de tentar estofar o «Fiat 127» com a maior percentagem física do recheio doméstico, segundo o princípio nacionalmente consagrado de que tudo pode vir a dar jeito, porque nunca se sabe. Levar duas botijas de água quente para a Caparica (para o caso de uma derreter ao Sol), pode parecer estupidez, mas mais vale prevenir que remediar, e quem ri por último ri-se melhor (e durante uma eventual 5.ª Glaciação isto ainda é mais verdade). (…)
Liga a ignição e, passados uns minutos, ei-lo rodando alegremente na auto-estrada, à velocidade que o manual oficial Fiat assegura ser de «cruzeiro», feliz por saber que já não falta asssim tanto tempo para a excursão ser paralisada pela súbita expressão, da parte de todos os passageiros, de uma aflitiva vontade de fazer «uns chis-chis».
Aproveita-se a paragem para montar o primeiro piquenique do dia. Sabendo que leva mais de uma hora para o «camping-Gaz» aquecer o óleopara os rissóis de bacalhau e querendo fugir à pequena e média empresa familiar expressamente constituída para desfiar o escamudo, ele decide proceder à primeira verificação técnica da pressão dos pneus. (…)
Dá volta ao carro e contenta-se com o dar um bom pontapé em cada pneu - «está tudo O.K.» Com voz suave mas firme, dá instruções à esposa no sentido de lhe dar uma rápida passadela a ferro no fato de treino, vincado durante a viagem pelo assento do automóvel, isto apesar do revestimento especial de lã de carneiro e da protecção da almofadinha de napa.
Fica em fato de banho enquanto a mulher tenta ligar o ferro especial de campismo (comprado em Badajoz por um primo) à tomada do isqueiro do automóvel. Desloca os testículos do forro pegajoso do fato de banho várias vezes sucessivas, até se maçar.
Irritado, por conseguinte, grita à mulher: «Olha que os rissóis estão a arrefecer!» A mulher, já vítima de três pequenas mas desconcertantes descargas eléctricas, não consegue conter a raiva acumulada e responde-lhe de rajada: «Ó querido, mas se não há fogão, como é que tu queres que eu tenha os teus rissóis quentinhos?»
Esta ameaça de iminente insubordinação leva-o para junto dos filhos, que teme o julguem menos inteligente. Dá uma forte chapada na rapariga e um beijinho molhado no rapaz. (…)
Quatro horas depois, o homem já está novamente ao volante, embora com o carro ainda parado, tentando detectar eventuais folgas na condução com bruscos movimentos laterais para a esquerda e direita. («É assim que elas se deixam apanhar!») A mulher regressa de um riacho distante, já com o último carregamento de louça lavada. «Despacha-te», diz ele, levemente enternecido pela devoção da esposa, «se não, chegamos à Caparica a horas de jantar». (…)
Chegam, por fim, à Caparica. O lar permanente é já uma memória longínqua (Reboleira). Ele já não está embriagado, mas sim abatido sob uma ressaca que lhe parece transformar o fato de treino numa cinta de casca ressequida de porco-espinho na terceira idade. «Aqueles rissóis estavam inzeitados e deram-me cabo da ursa», diz ele, sem malícia, pois que sinceramente convencido. «Beb um digestivo», aconselha a esposa, passando-lhe o garrafão do bagaço, «enquanto eu mais a Rosa montamos a tenda». Entretanto o rapaz experimenta a sua primeira fantasia erótica, folheando um «Século Ilustrado».
«Monta-me primeiro uma lona, se fazes favor», pede ele, dirigindo-se para o pinhal onde viu desaparecer o filho, enquanto luta com a rolha do garrafão, propositadamente enterrada com toda a força no gargaglo para impedir excessiva evaporação.
Cansado da viagem, adormece, embalado pelo álcool e animado pela consciência tranquila de que amanhã estará realmente a passar as férias que merece. E que ainda tem, para mais, uns diazitos para gozar em Novembro. Com a família, evidentemente."
CARDOSO, Miguel Esteves, “A Causa das Coisas”, Lisboa, Assírio & Alvim, 1986, p.p. 101-104.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, junho 18, 2003