A montanha mágica

terça-feira, maio 13, 2003

LITERATURA

JPP, abrupto.blogspot.com, sugeriu a publicação das últimas páginas do romance , quando Hans Castorp desce da Montanha para seguir o seu "destino" provável na guerra , Numa altura em que se fala da guerra e da paz , a enorme força e tristeza desse final vale a pena ser lido . Elas aqui ficam. A tertúlia pode começar.


"Muitas vezes, as suas relações com as grandes constelações do mundo eram contraditórias, acossadas de escrúpulos e perturbadas por embaraços. Recentemente, havia apenas ano e meio ou dois anos, a cooperação diplomática do seu país [Alemanha] com a Áustria na questão da Albânia perturbara-lhe o curso das ideias, essa cooperação que o satisfazia por ser dirigida contra um país semi-asiático, contra o Knut e contra as bastilhas czaristas, e ao mesmo tempo o atormentava por ser uma mésalliance com o inimigo hereditário, com o princípio da reacção e do avassalamento dos povos. No último Outono, o grande empréstimo que a França fizera à Rússia para a construção de uma vasta rede ferroviária na Polónia, despertara nele sentimentos igualmente heterógeneos. Porque o sr. Settembrini pertencia ao partido francófilo da sua terra, o que não nos deve admirar se nos lembrarmos que o avô comparar os dias da Revolução de Julho aos da criação do Universo; e, no entanto, o acordo entre a república esclarecida e a Bysâncio cítica suscitava-lhe, apesar se tudo, dúvidas morais e oprimia-lhe o peito. Mas essa angústia também não tardava a converter-se em esperança e alegria que lhe aceleravam a respiração, sempre que se recordava do significado estratégico dessas vias férreas. Então teve lugar o atentado contra o príncipe herdeiro, que para todos, excepção feita de certos dorminhocos alemães, constituía um sinal de tempestade, um aviso aos iniciados, entre os quais temos toda a razão para incluir o sr. Settembrini. Hans Castorp, na verdade, viu-o horrorizar-se como indivíduo diante desse acto terrorista, mas observou como o peito do humanista vibrava com o pensamento de que se tratava de uma façanha libertadora, brotada do seio de uma nação e dirigida contra a cidadela que ele mais odiava, posto que, ao mesmo tempo tivesse de considerar esse feito como o fruto de actividades moscovitas, o que o inquietava, mas não o impedia de qualificar de insulto à humanidade, e de crime hediondo, o ultimato que a monarquia, três semanas mais tarde, dirigiu à Sérvia, dadas as consequências que previa como conhecedor do assunto, e que saudava com respiração ofegante.
Numa palavra, os sentimentos do sr. Settembrini eram tão complexos como a fatalidade que ele via precipitar-se com imensa rapidez, e para a qual procurava, por meio de palavras veladas, preparar o discípulo, se bem que uma espécie de cortesia e de compaixão nacional o impedisse de exprimir todo o seu pensamento. Nos dias das primeiras mobilizações e da primeira declaração de guerra adquirira o hábito de estender as mãos ao seu visitante e de apertar as do outro, de uma maneira que tocava o coração, senão o cérebro do simplório. «Meu amigo, - dizia o italiano. – A pólvora, a imprensa, é incontestável que foram inventadas por vocês, outrora. Mas se o senhor pensa que marcharemos contra a Revolução… Caro...
Durante os dias da mais terrível expectativa durante os quais os nervos da Europa ficaram tensos numa verdadeira tortura, Hans Castorp não viu o sr. Settembrini. (...)

Na fria realidade, o mentor encontrou-o ocupado a fazer as malas porque Hans Castorp, desde o momento em que acordara, via-se arrastado no turbilhão das partidas precipitadas que o trovão desencadeara no vale. A «pátria» da montanha, assemelhava-se a um formigueiro em pânico. (...)

Neste tumulto Lodovico abraçou-o – abraçou-o literalmente, cingiu-o com os braços e beijou-lhe ambas as faces, como meridional (ou como um russo), o que não obstante toda a sua emoção, não deixou de acanhar o nosso viajante. Mas este, quase perdeu a serenidade, quando no último instante, o sr. Settembrini o chamou pelo primeiro nome, lhe chamou «Giovanni» abandonando a forma de tratamento habitualmente usada no Ocidente civilizado, quer dizer, tratando-o por tu.
- E cosi in giu – disse – in giu finalmente! Addio, Giovanni mio! Teria preferido ver-te partir noutras circunstâncias, mas seja! Os deuses assim resolveram e não de outro modo. Era ao trabalho que esperava ver-te regressar, mas eis que vais combater entre os teus. Meu Deus, coube-te a ti em sorte, e não nosso tenente. [Joachim Ziemssen, primo de Hans Castorp falecido entretanto, e que tinha como sonho de vida ser general e combater] É a vida… Luta valentemente, lá onde te mandam os laços do sangue! Ninguém pode fazer mais, agora. Mas perdoa-me se emprego o resto das minhas forças para concitar também o meu país à luta, do lado onde o espírito e os interesses sagrados lhe ordenam que se coloque. Addio! (...)

Onde estamos? Que é isto? Onde nos levou o sonho? Crepúsculo, chuva e lama, rubros clarões de fogo no céu incendiado. Um trovão surdo ressoa sem cessar, enche o ar húmido dilacerado por silvos agudos, por uivos raivosos, infernais, cujo caminho termina entre estilhaços, jactos de terra, detonações e labaredas, gemidos e gritos, clarinadas estridentes que ameaçam despedaçar-se num crepitar cada vez mais rápido, mais rápido, mais rápido… (...)

É a planície, é a guerra. E nós somos tímidas sombras à beira do caminho, envergonhando-nos da segurança de sombras de que gozamos, pouco dispostos a alargarmo-nos a bravatas e fanfarronices, guiados até aqui pelo espírito da nossa história… (...)

Trouxeram-nos aqui, trouxeram esses camaradas, para que dessem o seu último vigor a uma batalha que durou o dia inteiro, e cujo objectivo é a reconquista destas mesmas posições na colina e das duas aldeias em chamas, lá em baixo, anteontem tomadas pelo inimigo. É um regimento de voluntários, sangue jovem, na maioria estudantes, com pouco tempo na frente da batalha.(...)

Ei-los, seu sangue jovem suportou tudo, os corpos excitados e já exaustos, mas ainda tensos pelas mais profundas reservas vitais, não se preocupam com a alimentação nem com o sono de que foram privados. Os rostos molhados, salpicados de lama, emoldurados pela jugular, ardem sob os capacetes revestidos de pano cinzento e que caíram para trás. Estão inflamados pelo esforço e também pelas baixas que sofreram durante a marcha através do bosque alagado. Porque o inimigo, advertido da sua aproximação, lançou-lhe sobre o caminho uma barragem de shrapnels (granadas que deixavam cair um chuveiro de balas sobre os combatentes), e de granadas de grosso calibre; fogo que estalara e devastara os grupos em pleno floresta e agora açoita a vasta campina arada, uivando, vomitando chamas, arrojando terra para todos os lados.
É preciso que passem esses três mil rapazotes febris, são reforços que têm de decidir, com as baionetas, o assalto às trincheiras cavadas diante e atrás da cadeia de colinas, e às aldeias incendiadas; cabe-lhes levar o ataque até determinado ponto que se encontra assinalado na ordem que o chefe traz no bolso. São três mil para que sobrem dois mil, quando chegarem às colinas e às aldeias; tal é o sentido do seu grande número. Formam um grupo composto de tal maneira que, mesmo depois de graves perdas, possam agir ainda, vencer e saudar o triunfo com um hurra de milhares de vozes, sem se importar com aqueles que se tenham isolado ao cair.»

«Já inundam o terreno lamacento, chicoteado pelos estilhaços, a estrada, o caminho, os campos esponjosos; nós, as sombras espectadoras, à beira do caminho, achamo-nos entre eles..(...)

Ah, toda esta bela juventude, com as suas mochilas e baionetas, com as capas e as botas enlameadas! Com uma imaginação humanista e inebriada pela beleza, poderíamos sonhar outras imagens. Poderíamos ter a seguinte visão: esses jovens montando e banhando cavalos numa enseada, passeando pela praia em companhia da namorada, achegando os lábios à orelha da meiga noiva, ou ensinando uns aos outros, numa amizade feliz, o tiro de arco. Que façam isso com alegria, ainda que transidos de medo e com indisível saudade de suas mães, é uma coisa admirável que nos orgulha e envergonha, mas nunca dos deveria induzir a colocá-los nesta situação.
Eis o nosso amigo, eis Hans Castorp. Já de longe o reconhecemos pela barbicha que deixou crescer, enquanto comia à mesa dos «russos ordinários». Arde, ensopado pela chuva como os outros. Corre, os pés trôpegos, agarrando a espingarda. Vejam, pisou a mão de um camarada caído, a sua bota ferrada afundou essa mão no solo lamacento, crivado de estilhaços. E todavia é ele! Como? Ele canta? Cantarola, como se faz sem saber, de si para si, numa excitação surda, vazia de pensamentos, aproveitando a respiração ofegante:

Ich schnitt in seine Rinde
So manches liebe Wort…

(Talhei em sua casca
Mil palavras de amor…)

Cai. Não, atirou-se ao chão, porque um cão infernal se aproxima, um enorme obus, um atroz pão de açúcar, saído das trevas. Acha-se estendido, comprimindo o rosto no barro frio, com as pernas escancaradas e os pés torcidos, colados ao chão. O produto de uma ciência barbarizada, carregado com o que de pior existe, penetra a trinta passos dele, obliquamente, no solo, como o demónio em pessoa, onde explode com espantosa violência e joga à altura de uma casa um jacto de terra, fogo, chumbo, ferro e humanidade despedaçada. Porque nesse lugar dois homens estavam estendidos, eram dois inimigos, tinham-se reunido na sua angústia; agora estão confundidos e aniquilados.
Ó vergonha da nossa segurança de sombras! Partamos! Não vamos contar com isso. O nosso amigo foi ferido? Durante um momento, ele mesmo acreditou que sim. Um grande torrão batera-lhe na canela, doía, mas era ridículo! Põe-se em marcha, coxeia, avança a cambalaear, com os pés pesados de barro, e canta inconscientemente:

Und sei-ne Zweige rauschten
Als rie-fen si emir Zu…

(Os galhos sussurravam
Chamando por mim…)

E assim, no tumulto, na chuva, no crepúsculo, perdemo-lo de vista.
Adeus, Hans Castorp, bravo menino mimado da vida! A tua história terminou. Acabámos de conta-la. Não foi nem breve nem longa, é uma história hermética. Contámo-lapor amor a ela mesma, não por amor a ti, porque tu eras simples. (...)

Adeus! Agora vais viver ou morrer! Tens poucas probabilidades. Este baile macabro a que foste arrastado durará ainda alguns anos criminosos e não queremos apostar muita coisa na tua possibilidade de escapar. Para falar com franqueza, não sentimos grandes escrúpulos ao deixar esta questão sem resposta. Certas aventuras da carne e do espírito, que educaram a tua simplicidade permitiram-te vencer no domínio do espírito aquilo a que não escaparás certamente no domínio da carne. Momentos houve em que nos sonhos que tu «governavas», viste brotar da morte e da luxúria do corpo um sonho de amor. Será que dessa festa da morte, dessa perniciosa febre que incendeia à nossa volta o Céu desta noite chuvosa, também o amor surgirá um dia."

MANN, Thomas, “A Montanha Mágica”, Lisboa, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 2000, p.p. 743-749.

posted by Luís Miguel Dias terça-feira, maio 13, 2003

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