terça-feira, maio 20, 2003
CRÓNICAS
A Eternidade
Por ANTÓNIO BARRETO
Domingo, 04 de Maio de 2003 in Público.
Foram semanas de inquietação. A incerteza, uma estação das chuvas que nunca mais acabava... Às vezes, temos de parar o vento para que as ondas se tornem mais suaves. Finalmente, nesta sexta-feira de manhã, em Belém, perto do Tejo, o azul do infinito anunciou o seu regresso a mostrar como o efémero pode ser eterno. Em apenas três árvores, quase imperceptíveis, as primeiras flores de jacarandá mostraram a sua cor. Há quem prefira as palmeiras bravas, mas a serenidade deste azul desafia as paixões. Dentro de poucas semanas, Lisboa será diferente. Pode o défice crescer, os estudantes fazerem greve e o parlamento falhar a sua própria reforma. Podem as gerações mais velhas gemer com a perda de valores e os autarcas lisboetas jubilar com o absurdo da construção de um casino. Pode a União Europeia fingir que não tem problemas de maior. Podem as Mães de Bragança declarar a sua impotência perante maridos libidinosos. E bem podem queixar-se, nas ruas onde abundam estas flores, os que vêm os seus carros estragados pelas "resinas" que, durante a floração, escorrem das árvores. Pode tudo isso acontecer, que nada nos fará perder a beleza estonteante dos jacarandás em flor.
Há anos que sigo este momento da vida lisboeta. Que eu saiba, nenhum jacarandá foi recentemente destruído. Pelo contrário, vários foram plantados, como no Parque das Nações e no Rossio. Os jacarandás deste ano chegam devagar. Talvez por causa do atraso do calor. Tentei saber se as novas tecnologias estavam a par do fenómeno. Fiquei de boca aberta. O "Google" dá 56.200 páginas e sites. Os brasileiros, os australianos e os sul-africanos têm orgulho nas suas florestas de jacarandás. Os portugueses, atrasados, também o terão um dia. À falta de livros sobre as árvores de Portugal, consulte-se a Internet, onde se ficará a saber tudo. Que o seu nome vem da língua tipu-guarani. Que jacarandá é nome em vários idiomas, que há americanos que lhe chamam impropriamente rosewood, que os franceses tanto dizem jacaranda como, sem cuidado, palissandre, e que os alemães lhe chamam Palisander baum. Que há cinquenta variedades, entre as quais as mais conhecidas, as mimosifolia, as cuspidifolia e as ovalifolia. Que existem milhares de instituições, empresas, restaurantes, motéis, praias, grupos de investigação, rádios, lojas de mobiliário, hortos, centros de estudos e até uma comunidade da Opus Dei... que do jacarandá ostentam o título!
Melhor do que as finanças e as bibliotecas, melhor do que o congresso do futuro e o jogo do Pulo do Lobo, melhor do que tudo isso são os jacarandás de Lisboa. Explodiram nesta semana. Nas ruas onde moram e nos poucos parques onde sobram, aí estão, orgulhosos. E doces. (15.5.1994)
Não sei se é um relógio biológico, ou se é a principal fidelidade do "Retrato da Semana". Só sei que, desde há oito dias, me sinto outro. Feliz. De sábado para domingo passados, os jacarandás ocuparam Lisboa. A capital ficou diferente. Na D. Carlos I, na D João V, no Eduardo VII, na Barata Salgueiro, na Rodrigo da Fonseca, no Jardim da Burra, na Castilho, é vê-los, magníficos, com a surpresa de que as certezas são capazes. Mau grado os urbanistas, os arquitectos, as multinacionais, a burocracia, os grandes projectos, o Estado, o poder local, os capitalistas, os promotores e os indígenas, os jacarandás continuam fiéis. E insistem na beleza, sem parâmetros nem paradigmas. Vieram, ao que consta, da América. Dão excelente madeira para marcenaria. São da família das bignoniáceas. Entre íntimos, são conhecidos por "Jacaranda ovalifolia". E, durante um breve tempo, reinam. (17.5.1995)
Fica em Lisboa, na confluência da Barata Salgueiro com a Rodrigo da Fonseca e a do Salitre. Uns dirão que é por estranhas razões climatéricas, mas eu afirmo que se deve à idade e à nobreza. Ali está um jacarandá, o primeiro, em cada ano, a florescer. Ainda os outros se perguntam se já chegou a sua vez, se o calor da Primavera pegou e se todos estarão de acordo, e já ele mostra ser o senhor da circunstância. É ele que faz a estação. Dentro de uma semana, os outros seguirão. Pela cidade fora, nas ruas com sorte, em dois ou três parques, num ou noutro jardim, a sua beleza inacreditável vai compensar-me do pior do ano. As flores são de dias, mas o azul é eterno. E não há mar que se lhes compare. (26.5.1996)
Como habitualmente, o da esquina da Rodrigo da Fonseca com o Salitre parecia querer comandar as hostes: tudo levava a crer que seria, uma vez mais, o primeiro. O do largo do Rilvas esforçava-se. O das Trinas preguiçava. Os da D. Carlos I vigiavam os pioneiros. De repente, no mais esplendoroso caos, todos os jacarandás de Lisboa floresceram. Sem esquecer os das Avenidas, de Santos, da São Mamede, da D. Pedro V, das Necessidades, do jardim da Burra e do parque Eduardo VII. Literalmente, perderam a cabeça: deslumbraram-nos um mês antes da data prevista. Estranhei a pressa. Consultei os meus registos. Nos últimos doze anos, a mais recuada data de floração tinha sido em 1995: primeira semana de Maio. Em todos os outros anos, o acontecimento ocorreu entre a segunda e a última semana do mesmo mês. Este ano, depois de um estranhíssimo fim de Inverno e com esta Primavera, mostraram a sua graça com inusitada antecedência! Há quem insista em crer que Abril é o mês mais cruel. Com os jacarandás, não acredito. A mistura de desejo e memória nem sempre é explosiva.
Eu sei que estas bignoniáceas, originárias da América Latina e chegadas à Europa nos séculos XVII e XVIII, também são úteis: delas se retira uma espécie de pau-santo ou pau-preto, uma matéria corante (a jacarandina) e, ao que dizem, um alterador de consciência. Mas que são essas utilidades ao lado da exuberante beleza que nos oferecem?
Beleza esta que, infelizmente, os meus contemporâneos ignoram. É certamente um dos motivos que me poderia levar ao divórcio de pátria ou ao pedido de naturalização noutros países: a indiferença que a maioria dos portugueses, incluindo as instituições e as empresas, dedica às árvores. Se lhes derem dinheiro, o mais possível no mais curto lapso de tempo, ainda pensam nelas. Veja-se o eucalipto. Se não for o caso, detestam, ignoram e destroem. Sombra, beleza, aroma, abrigo, acolhimento, paz, murmúrio, natureza, serenidade, respeito, história e ambiente são-lhes indiferentes. A não ser que possam ser consumidos individualmente, no sofá, em casa. (20.4.1997)
De acordo com os meus registos, nunca tinha acontecido: o primeiro jacarandá floresceu a 25 de Abril! (26.4.1998)
O mau tempo das últimas semanas teve efeitos surpreendentes. Impediu o bombardeamento ad libitum dos Jugoslavos. Desencadeou furacões inéditos nos Estados Unidos. E atrasou a floração dos Jacarandás. Apesar disso, o primeiro, lá para os lados de Santos-o-Velho, deu um ar da sua graça. (9.5.1999)
Lá para os lados de Alfama, escondido, abrigado do mau tempo, o primeiro jacarandá de 2000 mostrou, ainda timidamente, a sua flor. Não quis, por nada deste mundo, perder tão louca semana. É do que de melhor nos ficou de 500 anos de Brasil. (14.5.2000)
Mas nem tudo está perdido. Neste fim-de-semana, os jacarandás floriram. (13.5.2001)
A vida tem sido difícil para os jacarandás. Depois de um ano frio e molhado, veio um seco e quente. Ambos em excesso. O ano passado, tiveram vida excepcionalmente curta. Este ano, estão aí de novo. Vamos ver. Mostraram-se esta semana. É um dos melhores momentos da vida de Lisboa. (5.5.2002)
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, maio 20, 2003