quinta-feira, maio 01, 2003
CRÓNICAS
António Valdemar
Os perigos reais
Qualquer língua constitui um dos vínculos da nacionalidade e um dos elementos fundamentais da cultura e civilização dos respectivos povos. Mas Samuel Huntington, no seu famoso livro The Cast of Civilizations, entende que é através das línguas e outros idiomas simbólicos que, também, se comunicam as religiões. Daí considerarem línguas sagradas as que Deus terá falado através dos seus profetas.
Esta classificação não abrange, por exemplo, o latim, idioma oficial de Roma e do seu império, no qual viria a ser traduzida a Bíblia, mas já é o hebraico, do Antigo Testamento, o koiné grego do Novo Testamento, o sânscrito dos Vedas e o árabe do Corão. Terá interesse lembrar que o Corão é, apenas, teologicamente válido, quando proferido na língua árabe. A espiritualidade islâmica associa-se, portanto, á solidariedade política.
A presença e a função da língua portuguesa, no mundo do nosso tempo e em face dos macro- blocos geoculturais, deu lugar a diversos ensaios de interpretação e crítica do professor universitário brasileiro Vamireh Chacon, agora reunidos no livro O Futuro Político da Lusofonia (Editorial Verbo). Terá sido motivado, segundo o autor, pelo V centenário da Descoberta do Brasil (2000), que coincidiu, aliás, com o primeiro centenário do nascimento de Gilberto Freyre, um dos vexilários do «mundo que o português criou»: para uns, o luso-tropicalismo, para outros a luso-tropicologia e, ainda, para outros apenas tropicologia.
Remonta, contudo, á criação do Mercosul, da CPLP e, ao legado sociológico e doutrinário de Gilberto Freyre, de que Vamireh Chacon é um dos estudiosos. Inseparáveis do contexto são, também, as mudanças resultantes da queda do muro de Berlim e o desmoronar da União Soviética e, na viragem do século, as inovações tecnológicas e organizacionais, a computorização electrónica e a universalização informática.
Tudo isto acentuou o que se chama globalização, a hegemonia da língua inglesa e das ideologias que lhe estão subjacentes. Na área da lusofonia, para além da penetração do francês na Guiné-Bissau, verifica-se o domínio do inglês em Moçambique; já se consumou esse domínio em Goa, Damão, Diu, Macau e mesmo Timor que se debate, com o bahasa indonésio. Perante este quadro recorda uma observação de Gilberto Freyre, de 1940, no auge da infiltração hitleriana junto das comunidades alemães no Brasil. Ao alertar, então , para os «perigos reais», objectivou-os nesta síntese: «não há perigos de nações contra nações _ estes são transitórios _ nem de Estado contra Estado _ estes são ainda mais superficiais; e sim os perigos de culturas contra culturas; as ameaças de imposição violenta da parte dos grupos tecnicamente mais fortes a grupos tecnicamente ainda fracos, de valores de cultura e de formas de organização social, dentro das quais os povos menores se achatariam em vassalos, por serem mestiços ou por isto ou por aquilo.»
Entre os desafios políticos que se deparam, no presente e no futuro, recoloca Vamireh Chacon a prioridade e urgência de resguardar o espaço da lusofonia de qualquer espécie de intromissão de imperialismos no íntimo da sua vida e no essencial da sua cultura.
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posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 01, 2003