segunda-feira, abril 14, 2003
POESIA
O POETA, I
Ninguém contempla as cousas, admirado.
Dir-se-á que tudo é simples e vulgar…
E se olho a flor, a estrela, o céu doirado,
Que infinda comoção me faz sonhar!
É tudo para mim extraordinário!
Uma pedra é fantástica! Alto monte
Terra viva, a sangrar, como um Calvário
E branco espectro, ao luar, a minha fonte!
É tudo luz e voz! Tudo me fala!
Ouço lamúrias de almas, no arvoredo,
Quando a tarde, tão lívida, se cala,
Porque adivinha a noite e lhe tem medo.
Não posso abrir os olhos sem abrir
Meu coração à dor e à alegria.
Cada cousa nos sabe transmitir
Uma estranha e quimérica harmonia!
É bem certo que tu, meu coração,
Participas de toda a Natureza.
Tens montanhas, na tua solidão,
E crepúsculos negros de tristeza!
As cousas que me cercam, silenciosas,
São almas, a chorar, que me procuram.
Quantas vagas palavras misteriosas,
Neste ar que aspiro, trémulas, murmuram!
Vozes de encanto vêm aos meus ouvidos,
Beijam meus olhos sombras de mistério.
Sinto que perco, às vezes, os sentidos
E que vou a flutuar num rio aéreo…
Sinto-me sonho, aspiração, saudade,
E lágrima voando e alada cruz…
E rasteirinha sombra de humildade,
Que é, para Deus, a verdadeira luz.
Teixeira de Pascoaes
O POETA
Eu era na Montanha. Cerrava-se pouco a pouco a boca do homem e começava o murmúrio do Silêncio. Em baixo, perto e ao longe, uma névoa fina, casando-se com o fumo dos lares, envolvia a terra em sonho e recolhimento. Na Montanha começava o colóquio dos humildes. Junto a mim uma planta rasteira e anónima entregava o coração ao vento misterioso do crepúsculo. Estremecia dum modo singular, inquietante. A Montanha concentrava a sombra nos flancos. Eu olhava e sentia correr em mim o tempo. Uma profunda tristeza, espessa, bem material, me apertava o coração. Ao meu lado uma árvore; que eu amo, e, há muito, conheço no sofrimento; pôs-se a entornar sobre mim pesadelos de sombra. É um velho carvalho. Alto, contorcionado, ergue os ramos convulsos na serenidade da Sombra.
As suas raízes são vagalhões petrificados.
Lá em cima a vida é rude. Há ventanias arrepiantes. Os meus ramos subiram a alturas onde os ventos insofridos ululam.
Por isso aquela árvore penetrou a Montanha, espalhou sobre ela aquele cordame de raízes.
Procuro afinar com as falas do Silêncio. E é cada vez mais espessa, mais negra e material a minha tristeza. Sinto corações na sombra, diluídas ternuras, ignorantes amores que se buscam. E cada vez, mais materialmente, dentro de mim, sinto correr o tempo.
E começo a compreender as falas do Silêncio. Tudo soluça, porque tudo se fala no seio do Amor.
É na Eternidade que se tocam as criaturas mortais. Tudo o que morre quer afirmar a imortalidade do seu amor. Esta pobre Natureza que me cerca e eu beijo é, como eu, vítima do Tempo. E agora sinto correr o Tempo por sobre todos os amores e vejo o horizonte coberto dos cadáveres de tantos sonhos, aspirações e afectos. Esta anónima planta estremece inquieta, porque ao abrir dos lábios para erguer a palavra, ao rasgar do coração para espalhar o Amor, responde a cegueira do Tempo, que apaga a palavra esboçada, que dispersa o amor iniciado.
E ela clama no misterioso, solitário espaço! Clama como um protesto e como uma súplica. E além, no despido aconchego dos daqueles lares, eu vejo mãos erguidas que imploram Eternidade. Alguém dentro de mim responde a esses gritos de aflição, que pedem socorro.
Esse alguém é o Poeta. Olhos incendiados, coração em pura chama de amor, ele caminha, soberbamente glorioso e triste. Ele, só ele, sabe extrair a eternidade ao instante. Ele vai dizer a todas as cousas mortais que há eminências que dominam o Infinito. E, no seu coração e por virtude do seu amor divino, as cousas efémeras se volvem imortais.
A eterna presença das grandes virtudes, das grandes dolorosas experiências, o Poeta a realiza.
Sofrimentos humanos, esperanças humanas, ansiedades humanas, o Poeta as torna permanentes na vida do homem. Os valores morais não se perdem na humanidade, porque sempre o coração do Poeta os recebe para os eternizar. Não se perdem no Infinito? Ainda o Poeta os ergue às eminências sobranceiras, dominadoras de Deus. E ou a verdade última do Universo é um sarcasmo, ou na eternidade plena coloca o Poeta todas as obras do Amor.
Ser Poeta é eternizar o instante, é fazer da vida um contínuo deslumbramento, um permanente convívio com Deus. Deus omnipotente? Se a nossa razão é uma mentira, pode Deus ser impotente, incompleto.
Se não é a nossa razão um ludíbrio, é Deus a plenitude infinita. Mas sempre o Poeta é divino, porque nos exalta, nos eleva, nos sublima. É ele o ponto de contacto da nossa pobre alma quotidiana com a nossa efémera alma sublime. E é indiscutível a existência de uma realidade espiritual para além e por cima da humana realidade consuetudinária. Perfeita, infinita? Mistério. Mas no mistério vivem as almas e, sem ele, impossível seria a existência. Não o mistério sombrio do Destino, mas o claro mistério da inesgotabilidade do Amor.
E no mistério, o Poeta canta, e no mistério se eleva luminosa a sua fraterna oração de piedade e de amor. O mundo sem mistério é absurdo; seria um todo acabado e perfeito, não seria o Mundo, mas Deus. A objectivação completa seria o aniquilamento da alma, a dispersão absoluta.
Na fluidez do mistério é o seio inesgotável de amor, onde as almas se alimentam; onde a virtude, o esforço, a perseverança mergulham raízes de sofrimento para erguerem as flores da fraternidade e da candura.
Nesse oceano do mistério o Poeta mergulha e, a sorrir ao Sol, ele levanta nas evangélicas mãos as pérolas da bondade oculta, silenciosa e humilde.
Assim falou dentro de mim o Poeta.
A Noite vestira de sombra a natureza inteira. E no recolhimento da Sombra, homens e coisas se abandonavam numa confiança infantil. Desci vagarosamente a Montanha, sentindo que ia de medindo com beleza os momentos, que vagarosamente se enchiam do meu coração. E já não corria o tempo sobre as coisas; elas dolorosamente iam tecendo o seu tempo, perdendo uma parte da obra em tentativas imperfeições. E, na cordilheira mais elevada da minha alma, eu via brilhar um sol eterno, de pura luz. Ao chegar à aldeia encontrei uma criança esfarrapada e triste. Diluído em amor, enternecimento, humildade e orgulho beijei loucamente essa criança.
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Como eram transparentes, como eram brancos, os olhos da Eternidade!
Leonardo Coimbra
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, abril 14, 2003