A montanha mágica

terça-feira, abril 01, 2003

Oratória

Não concordámos com a crítica feita no Expresso, e no Diário de Notícias de sábado passado, sobre a "Jeanne d`Arc au bûcher". Concordámos, isso sim, com João Bénard da Costa, e a sua crónica de sexta-feira no Público. Admirámos imenso o João Bénard da Costa, como ser humano e como profissional. Obrigado Bénard da Costa. Não percebemos, como se podem apontar críticas negativas, a um sublime desempenho, de uma actriz "tanto entre terra e céu". Ainda temos a voz de Isabelle Huppert, presa nos labirintos dos nossos tímpanos. "Jeanne! Jeanne!
Obrigado Luís Miguel Cintra.

Na Fogueira
Por JOÃO BÉNARD DA COSTA
Sexta-feira, 28 de Março de 2003

1 - Os meus tempos da Juventude Universitária Católica, do "Encontro", do CCC (não faz mal que não percebam bem, pois que estou só a molhar a "madeleine" no chá dos anos 50), são inseparáveis de muitas coisas, tantas que não bastaria um livro para as contar. Mas são inseparáveis também desse "long-playing" (outra referência que se foi com os tempos do vinil), um tudo nada mais avantajado que os "long-playing" normais, mas que não chegava a álbum (não me traia a memória) com as chamas e Joana d'Arc na capa. Salvo erro, era a primeira gravação da oratória dramática de Arthur Honegger (1892-1955) com libreto de Paul Claudel (1868-1955), "Jeanne d'Arc au bûcher", interpretada pela Orquestra de Filadélfia sob a direcção de Eugene Ormandy. Vera Zorina, a célebre actriz e bailarina que fora estrela do Ballet Russe e mulher de George Balanchine, era a protagonista, prolongando uma tradição interpretativa do papel, balética e russa, exótica e ínclita, que vinha da lendária Ida Rubinstein (1885-1969) criadora do papel na estreia da oratória (Basileia, 12 de Maio de 1938).

É possível - é bem possível - que essa gravação histórica dos anos 50 comemorasse a dupla morte de Claudel e Honegger, ambos partidos deste mundo em 1955. Mas não estou certo disso e não tenho mais o disco à mão. Do que estou certo é que haurimos um misticismo que nesses anos estava longe de perdido, ouvindo os versos de Claudel na voz de Vera Zorina: "Qui m'appelle? Qui est-ce qui m'appelle? Qui est-ce qui a dit Jeanne?" Quem a chamara havia sido Frère Dominique (São Domingos, ele próprio) que lhe perguntava "Ne me reconnais-tu pas?" E Jeanne d'Arc respondia: "Je reconnais l'habit de Dominique, la robe blanche et le manteau noir." Devo parar com o francês, que cada vez menos gente fala e cada vez tem pior reputação entre os intelectuais dos novos serviços. Se o usei foi como evocação, nessa métrica prodigiosa, dita por Vera Zorina de forma admiravelmente escandida. O papel dela e o de alguns mais são papéis falados, sustentados nos cumes e quebras pela música de Honegger.

Ouvíamos, voltávamos a ouvir, ouvíamos de novo. Quando Jeanne acabava de arder ("Fille de Dieu! Viens! Viens! Viens!") com o grande brado para as alturas ("Il y a l'Amour qui est le plus fort! Il y a Dieu qui est le plus fort") a emoção era mais pesada do que as correntes de que a Donzela de Orléans se libertara. Deus era o mais forte.

Depois, vi e ouvi Claude Nollier (São Carlos, 1964), ouvi Marthe Keller na gravação de Ozawa. Agora, foi a vez de Isabelle Huppert, na encenação de Luís Miguel Cintra e sob a direcção de Jonathan Webb. E, como sempre, aos primeiros acordes, quando o coro invoca as trevas e a França inane e vazia, a imagem começou a tremer e, encadeando-se e encadeando-me, fundiu com os "décors" austeros dos nossas casas dos anos 50 e com o grande plano de Vera Zorina. Beirais onde nasci, entre as partilhas do meio-dia e as solidões do rei David à meia-noite.

2 - Luís Miguel Cintra, em Março de 2003, ao quinto dia da guerra do Iraque, deu toda a verticalidade "à chama dessa vela em que Joana se transforma na fogueira de Rouen", colocando a imponderável Isabelle Huppert no centro de tudo, na cruz de uma arquitectura em que guardou "a memória das catedrais" com "algum esquematismo" e sem "nenhuma elegância". E, "permitindo-se o simbolismo das cores", vestiu Isabelle Huppert de escarlate, como Ingres em tempos também fez. "Di quella pira". E nela, portentosamente imóvel, Isabelle Huppert todo o tempo está, as mãos ligadas atrás das costas, virgem no corpo e filha de Deus na voz, medo de morrer no corpo e "active soeur sacristine" na voz, carregando na carne todos os nomes vis que lhe deram e lançando a voz para o seu nomezinho de cristã, esse nomezinho que, em francês, é o mais aéreo e o mais volátil.

Nunca vi uma actriz tanto entre terra e céu, palco e cúpula, tão assunta e ascendente como terrena e térrea. Jeanne, tal como Claudel ou também Péguy a viram, mulher e santa da cabeça aos pés e não só no rosto, como a tradição protestante (Dreyer, Bresson) no-la representou. Isabelle Huppert e Luís Miguel Cintra deram-me a mais católica das Jeannes d'Arc, genialmente servidos pela coreografia e figurinos inadjectiváveis de Cristina Reis.

3 - Joana d'Arc nasceu mais ou menos em 1412. Em 1456 - 25 anos depois de a terem queimado, teria ela 19 -, o Papa Calisto III anulou a sentença de 1431.

Mas, nos séculos XVI, XVII e XVIII, se me esquecer de Voltaire e dos enciclopedistas, não se falou muito da camponesa de Donrémy e a Lorena ainda não era lar dela. Se foi o romantismo (curiosamente, sobretudo Schiller com "Die Jungfrau von Orleans") quem a ressuscitou, quem a mitificou e literalmente a canonizou foi o século XX (Bento XV a elevou aos altares em 1920).

A Primeira Guerra Mundial deu-lhe os mais geniais cantores (Péguy, Claudel, Bloy) e Hollywood, muito antes de Dreyer, a primeira imagem, através de Geraldine Farrar (cantora de ópera) no filme de Cecil B. DeMille de 1916. Poucos santos - talvez nenhum - tenham conseguido nos nossos tempos uma tal fortuna estética. Para além dos nomes citados, o rosto da Falconetti, de cabeça toda rapada, as pombas de Bresson, a peça de Bernard Shaw, criada para e por Elisabeth Bergner. Rivette, Rossellini, Ingrid Bergman, Sandrine Bonnaire. Tantos, tantos mais. Se a santa é a santa de Le Pen, como se sabe, ninguém do outro lado do espectro ousou profaná-la ou reatear chamas. Talvez ninguém como ela seja tanto "la mécontemporaine", parafraseando o belíssimo título do belíssimo livro de Finkielkraut sobre Péguy, esse Péguy que tudo refundou no "Mystère de la charité de Jeanne d'Arc" de 1910, a obra que marcou a sua conversão ao catolicismo.

Caridade? Santidade? Podemos acreditar, no século XX ou no século XXI, que Deus tenha mandado à terra Santa Catarina e Santa Margarida para convencerem uma adolescente de 16 anos a pegar em armas pela França contra a Inglaterra, numa guerra que hoje não saberíamos se chamar preventiva ou defensiva? Acaso se casam com o repúdio generalizado das guerras - que está à nossa vista e têm no próprio Papa o seu representante mais autorizado - as cartas bélicas com que desafiou os ingleses em 1428, ou o fulminante ataque a Orléans, depois da inspiração de uma certa noite de 4 de Maio? É plausível que tenha sido por inspiração divina que fez coroar Carlos VII em Reims, ajoelhando com o seu estandarte para beijar a mão àquele que só nesse dia chamou rei? Não será plausível, não será explicável, mas, por isso mesmo, é que Péguy se referia à caridade dela como o maior mistério. E quem ler as actas do processo fatalmente esquece a guerreira "miraculosamente sustentada por Deus para defender a Fé e a Pátria", como se lê nos textos litúrgicos da festa dela (30 de Maio) para recordar a rapariguinha que evitou o pérfido ardil dos juízes, quando lhe perguntaram se se considerava em estado de Graça: "Se não estou, Deus ma dê, se estou, Deus ma conserve."

Quem pode dizer que compreende Joana d'Arc? Mas quem pode dizer que compreende Deus?

Nem a carne nem o sangue, nem a razão nem o siso, nos permitem compreensões dessas. A nossa pergunta perante ela é a mesma que Dominique lhe dirige no texto de Claudel: "Jeanne! Jeanne! Jeanne! Foi por um rei de carne que deste o teu sangue virginal?"

Mas não será sempre - repensei-o agora - por reis e rainhas de carne, homens ou mulheres de carne, que damos o nosso sangue, virginal ou não? Foi o rei de França. Podia ser o rei de Inglaterra. Podia não ser rei. As ideias passam, só a história fica. Ou, como dizia Péguy, o único grande escândalo, o único grande mistério é a História, nossa criação temporal.

"Amanhã", escreveu um dia Finkielkraut, "não se opõe a hoje como o eterno se opõe ao temporal ou a plenitude se opõe à finitude. Amanhã é ainda coisa temporal, coisa temporária, coisa do 'ulterior' perecível".

Talvez por isso Jeanne d'Arc seja mais vocação de futuro do que vocação de passado. O único ulterior não perecível é o grande brado que seis vezes pronunciou entre os madeiros ardentes. "Seis vezes pronunciou o nome do seu Salvador. Depois inclinou a cabeça e morreu."

Como se diz na oratória de Claudel: "Louvado seja o nosso irmão fogo que sabe como separar a alma da carne. Jeanne acima de Jeanne. Chama acima da chama. Louvado seja o nosso irmão fogo, que é sábio e forte." Nestes dias de guerra, louvo os dias da minha paz passada, louvo a virgem que gostou 40 vezes mais do seu estandarte do que da sua espada e louvo o fogo que sabe separar a alma da carne. "Jeanne d'Arc au bûcher", notas para uma visão. Na fogueira.

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posted by Luís Miguel Dias terça-feira, abril 01, 2003

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