quinta-feira, abril 10, 2003
MOLESKINE
TONINO GUERRA: O ANJO COM BIGODE
Era um tempo carregado de cerejas. Não das que se compram nos hipermercados, redondas, rúbeas e artificiais. Aquelas eram cerejas da terra. Puras, quase selvagens, pequenas e desprezadas pela economia do cavalieri e, certamente, não só por isso, mas também por isso, mais gostosas e lembradas. Os pássaros conhecem-nas e durante toda aquela estação rodearam-nas com acrobáticos voos, como se de uma dança de sedução leves, vestidas de sol e pardais.
A mais bela de todas é a de Gianni, o amigo surdo de Tonino Guerra, que pára o carro no meio da estrada para ler nossos lábios e explicar, a caminho da capela da Senhora do rectângulo de neve, que ele e Tonino descobriram aquela igreja abandonada, nos longos passeios pelo Vale do Marecchia. A capela concentra uma forte espiritualidade, uma áurea que parece vir de longe ou de mais fundo.
A porta de ingresso do edifício foi desenhada por Tonino, na qual reproduziu a grande folha, que depois vi reproduzida nos móveis de sua casa, igualmente desenhados e talhados por si. Foram as segundas palavras que nos disse, quando o encontrámos «tendes de visitar a Senhora do rectângulo de neve».
A capela é em granito, pedras de uma antiga construção, familiarizadas com orações e lágrimas de um povo. Numa das paredes, Tonino fez colocar uma cerâmica narrando a história do edifício: «Quando, por volta do ano 1700, se tentava construir um lugar de culto com as mesmas pedras rectangulares de uma antiga capela gótica desaparecida, por muitos anos não se encontrou o terreno adequado que desse garantias de segurança e estabilidade. Mas um dia, em Agosto de 1754, caiu a neve, pintando, na beira do monte, um rectângulo branco. E os operários perceberam que a Senhora lhes indicava lhes indicava o espaço sobre o qual devia surgir esta capela».
Fomos lá no domingo. Com Gianni. O carro segue sempre em segunda, motor furioso, e nós inquietos, porque o barulho, que só Gianni não ouve, profana o silêncio dos pássaros que abandonam as árvores, cobrindo de sombras aflitas os prados ainda verdes, mas também escarlates, das pequenas papoilas que quase incendeiam. Entre sorrisos e perfeita estupefacção, a grandeza daquele homem, saído, quem sabe, de uma das histórias de Tonino, como puro dom.
Dizia, a mais bela cerejeira é a de Gianni. Uma árvore meio vagabunda, quase abandonada, e por isso mais amada, vizinha e companheira de solidão da Senhora do rectângulo de neve. Foi aí que Gianni plantou uma cerejeira para Tonino Guerra. E, sempre que lá vai, não se esquece das flores silvestres para o olhar da Senhora e das cerejas para Tonino.
Durante meses percorremos as livrarias da cidade, com a obstinação de um amante, procurando os livros de Tonino Guerra. Apenas uma livraria (a livraria Croce) tinha alguns exemplares disponíveis. Diziam-nos, com aquele desplante (que só um romano pode ter!), que a editora era muito pequena e desconhecida, como se as pequenas editoras fossem incapazes de chegar à cidade. Vim a saber depois que o próprio Tonino Guerra desejava continuar nessa espécie de penumbra ou limbo, pois se as obras valem, o tempo as fará emergir como um fogo. Uma das suas últimas obras (Quarteto d`autunno, Maggioli Editore, 2001) trazia, como oferta, uma proposta de viagem pelo mundo distante de Tonino Guerra. Era um pequenino livro, La guidiana di Tonino. Na verdade, uma maravilhosa incursão desde Riccione, bem perto da estância balnear de Rimini (onde sugeriu que, nos dias mais escaldantes de Verão, substituíssem a música dos altifalantes pelo som da chuva para refrescar os pensamentos dos veraneantes), até Santo Sepulcro, bem no interior da Toscânia de Piero della Francesca, passando pela sua terra natal, Santarcangelo, em que Tonino, com a voracidade do encanto, percorreu as «estradas e caminhos do Vale Marecchia, levando os seus olhos a perscrutar até o impossível […]. Os seus passos deixaram uma marca, potente, indelével» (Rita Giannini). Era difícil não partir.
O comboio saía da estação Termini às 8 horas e 30 minutos, mas antes era necessário apanhar o 64, o autocarro, uma mistura de mito e pesadelo para quem tem de fazer a viagem de São Pedro até Termini. Nem eu nem José Tolentino de Mendonça esperávamos encontrar Tonino Guerra. Apenas pensámos subir até essas terras do Vale do Marecchia e, quem sabe, sentir os cheiros, as histórias e a presença que, misteriosamente, se prolonga nos lugares, nas pedras, nas bicas das fontes. E depois havia também aquele apelo dos lugares que ele criou, sobretudo «o jardim dos frutos esquecidos», «o santuário dos pensamentos» e os dois museus, «O museu de uma pintura só: o Anjo com bigode» e «O Depois da Ceia da Última Ceia». Um fim-de-semana de descanso nas frescas terras de Montefeltro, rodeados de silêncio.
É uma viagem longa a que vai de Roma até Pennabilli, na Emília Romagna. Para lá chegar é necessário cruzar as terras vermelhas de Bologna e seguir, em comboio de província – nesse dia repleto de adolescentes, cravejados de piercings e tatuagens, para os concertos de heavy metal de Imola -, até Rimini, a terra natal de Federico Fellini, com o seu magnífico templo dedicado a São Segismundo, onde Piero della Francesca pintou uma das coisas mais extraordinárias da arte do século XV: dois galgos, um alvo outro negro, de uma transcendência serena, comovente.
De Rimini até à cidade onde vive Tonino são ainda mais 50 km, em autocarro, sempre a subir. E este «subir» pode implicar um misterioso «descer», no sentido místico em que os santos falam de «subir ao monte carmelo», que exige sempre um despojamento, uma kenosis, para entrar no mundo da maior da fábulas, a santidade. E falo disto porque creio que é aí, nesse lugar distante, quem sabe, do próprio ocidente, que habita Tonino Guerra, ele a quem Tarkovski chamou «o último inocente» e «anjo», ele que vive o tempo e o espaço como afectos. «Subir» até Pennabilli e´assim, como viajar até ao Oriente. Ao passar pelas pequenas vilas de Santarcamgelo, Novafeltria, San Leo, presentes nas suas histórias, somos quase forçados a abandonar um certo tipo de vida a que nos habituamos e que poderíamos identificar com o jargão ocidental.
Tonino Guerra escreveu um dia: «é necessário que a ambição e a soberba do homem se enfraqueçam até atingirem a compreensão de todas as outras vidas. A totalidade do mundo está à nossa volta e todas as coisas criadas possuem direitos iguais. Há quem tenha voz para comunicar com sons e palavras e há quem se exprima com cores e perfumes. Viver é uma respiração encerrada até uma folha. É necessário perceber o sofrimento de uma flor e a amizade que nos chega de uma fragrância. O oriente não é somente uma zona geográfica. O oriente é também uma cavidade da nossa mente. O oriente é uma posição oblíqua a respeito de um mundo vertical. O oriente é uma atenção pelo tremor de uma folha. O oriente é uma desobediência aos desejos. O oriente toca-se com as mãos. Ou não se toca» (Tonino Guerra, Dizionario Fantástico, ed. Pietronemo Capitani, Rimini 2000 pp.115-116).
E assim chegamos a Pennabilli.
O fim de tarde apoderara-se do Vale Marecchia, cobrindo-o com um manto de oiro. Estranhamente havia ruído na pequena cidade. Procurámos o Hotel Pogetto. Uma multidão afluía à pequena praça, junto da Catedral. No meio da praça uma grande fonte, de água limpa, para sedes (im)puras. Ao alto uma das montanhas, iluminadas. Era Junho, e a razão para uma presença inusual de forasteiros era o Il Encontro Anual dos Artistas de Rua. Da Argentina, Brasil, Estados Unidos, Espanha, França, de todos os lados de Itália, talvez até de dentro dos filmes de Fellini e das próprias histórias de Tonino, chegavam artistas de circo, cantores de rua, vagabundos errantes acompanhados de seus cães, funâmbulos, palhaços, pintores… Todos se sentiam em casa. Pennabilli é a cidade amiga dos artistas de rua, como se vê escrito à entrada da cidade.
A primeira preocupação foi descobrir «o jardim dos frutos esquecidos», o pequeno museu de sabores, como diz Tonino, para nos fazer tocar o passado. Ali estão mais de sessenta tipos de árvores de fruto já desaparecidos. Quem deseja, colhe e saboreia. Ou então, deita-se e sonha. Mas ali também «La Meridiana dell`incontro», uma escultura de duas pombas, que projecta os perfis de Federico Fellini e Giulietta Massina quando os primeiros raios de sol da tarde incidem sobre elas; «O bosque encantado», conjunto de esculturas que formam um labirinto da alma, onde, por um segundo, perdemos a memória e reencontramos o dia mais feliz da nossa vida; «O jasmim do Dalai Lama» a recordar a visita de Sua Santidade; «O refúgio das Senhoras abandonadas» que um dia, desiludidas pelo desaparecimento dos verdadeiros viandantes, voaram para junto deste recanto e a nostálgica «Capela de Tarkovski», a perpetuar tempos de viagem de duas almas gémeas.
Este encontro já seria suficiente, já não teríamos corrido em vão: era como abrir as páginas de um livro ainda não escrito. Mas o dia era de sorte. Passando pelo meio da multidão (seríamos nós os únicos que viéramos à cidade sem a preocupação primeira de ver os artistas de rua?), entrámos na pequena loja Il bosco dei Regali, pequena casa comercial onde se encontram livros, cerâmicas e serigrafias do poeta. Inquirimos: «conhece Tonino Guerra?» A um sorriso inesperado, segue-se a resposta feliz: «claro, somos amigos! E se quiserem cumprimentá-lo têm apenas de esperar uns minutos, pois chegará em breve». Nada nos faria abandonar aquele lugar. Vimo-lo, pouco depois, no meio da população. Trazia as mãos atrás das costas, como faz quase sempre a caminhar. Estava, evidentemente, alegre por aquela festa, por ver assim as suas ruas.
A primeira a chegar à loja foi Lora, sua mulher. Nasceu na Rússia e o seu brilho vai directo ao coração. Olhos verdes, lancinantes, luminosos. Foi ela que nos apresentou Tonino. Beijámos-lhe a mão, como se faz, nestas paragens, aos anciãos. Ele sorriu. Quase pensei que o encontro acabaria ali. Lembrei-me de lhe dizer: «Tonino, gostaria de traduzir os seus livros». Ele pareceu desinteressado como só as crianças terríveis e doces o são. Sorriu uma vez mais. E estas foram as primeiras palavras que nos disse: «Quantas vezes pecam ao dia?»
Convidou-nos para sua casa. Em todos os lados se ouvia música e a euforia dos vendedores de bugigangas e de cerveja. Falou-nos de poesia, do cinema, das suas histórias com Tarkovski e das viagens ao encontro de Deus. Lora dançava uma canção hebraica. Os cães e os quarenta e dois gatos rodeavam-na. Tonino lembra-se de oferecer uma garrafa de vinho aos músicos. Eles agradecem e retribuem com outra música. Uma jovem grita «é Tonino! Não posso acreditar».
A noite passava e nós éramos felizes.
Mário Rui de Oliveira
in A Phala de Dezembro de 2002
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, abril 10, 2003