A montanha mágica

domingo, abril 13, 2003

HOMENAGEM




Auto-retrato de Teixeira de Pascoaes


ELEGIA DO AMOR

I

Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.
Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava, como a onda
A alar-se em nevoeiro.
Olhavas, descuidada
E triste… Ainda hoje te escuto
A música ideal
Do teu olhar primeiro!
Ouço bem a tua voz,
Vejo melhor teu rosto
No silêncio sem fim,
N a escuridão completa!
Ouço-te em minha dor,
Ouço-te em meu desgosto
E na minha esperança
Eterna de poeta!
O sol morria, ao longe;
E a sombra da tristeza
Velava, com amor,
Nossas doridas frontes.
Hora em que a flor medita
E a pedra chora e reza,
E desmaiam de mágoa
As cristalinas fontes.
Hora santa e perfeita,
Em que íamos, sozinhos,
Felizes, através
Da aldeia muda e calma,
Mãos dadas, a sonhar,
Ao longo dos caminhos…
Tudo, em volta de nós,
Tinha um aspecto de alma.
Tudo era sentimento,
Amor e piedade.
A folha que tombava
Era alma que subia…
E, sob os nossos pés,
A terra era saudade,
A pedra comoção
E o pó melancolia.
Falavas duma estrela
E deste bosque em flor;
Dos ceguinhos sem pão,
Dos pobres sem um manto.
Em cada tua palavra,
Havia etérea dor;
Por isso, a tua voz
Me impressionava tanto!
E punha-me a cismar
Que eras tão boa e pura,
Que, muito em breve – sim! -,
Te chamaria o céu!
E soluçava, ao ver-te
Alguma sombra escura,
Na fronte, que o luar
Cobria, como um véu.
A tua palidez
Que medo me causava!
Teu corpo fino
E leve (oh meu desgosto!)
Que eu tremia, ao sentir
O vento que passava!
Caía-me, na alma,
A neve do teu rosto.
Como eu ficava mudo
E triste, sobre a terra!
E uma vez, quando a noite
Amortalhava a aldeia,
Tu gritaste, de susto,
Olhando para a serra:
- Que incêndio! – E eu, a rir,
Disse-te: - É a lua cheia!...
E sorriste também
Do teu engano. A lua
Ergueu a branca fronte,
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua,
Que eu beijei, sem querer,
Seus raios virginais.
E a lua, para nós,
Os braços estendeu.
Uniu-nos num abraço,
Espiritual, profundo;
E levou-nos assim,
Com ela, até ao céu…
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo. (…)

Teixeira de Pascoaes

Evocação de Teixeira de Pascoaes


Não desejo aqui fazer nenhum estudo académico da poesia de Teixeira de Pascoaes. Um poeta não se celebra com o rigor da ciência e melhor lhe vai a sinceridade e a lembrança que a popularidade e a propaganda, que hoje as Academias e as Universidades são sociedades anónimas de gestão.
Ademais, Amarante é uma terra grata ao seu poeta, desmentindo o ditado que diz que ninguém é profeta entre os seus. Teixeira de Pascoaes é messias na sua terra e bem o merece, que nela escreveu os seus livros e, não se envergonhando nunca dela, a deu carinhosamente a conhecer ao mundo. Que melhor elogio para Amarante que essa visão transcendental, entre as areias do rio e a Via Láctea, que está na sua poesia e fez alguém dizer que a região do vinho verde era tão universal como a do vinho sabino de Horácio?!
Nada tenho pois para ensinar e estou aqui de mãos vazias como peregrino que agradece e não como instigador que castiga. Não trago comigo citações, nem mesmo juízos, mas um olhar de gratidão ou uma palavra humilde para deixar nesta terra de letras que se confunde Com Teixeira de Pascoaes. Pelo muito que admiro o Poeta, não quero ficar do lado de fora e por isso, mesmo com a impressão de estar descalço a única coisa que me resta é entrar e recordar em voz alta, que é o tom dos que pensam, mas também dos que aprendem, aquelas linhas de força que me deram, em silêncio, a alegria do desejo.
Não há silêncio que não seja expressão, ou música, tanto faz, e assim o que se diz é muitas vezes o que se lembra. Mas também, por isso, os motivos pessoais que nos excitam são ainda as razões colectivas de uma suspeição incoercível. No caso deste escritor, é cada vez mais difícil virar a cara à sua galáxia portentosa, feita de elementos desconhecidos, que são afinal o céu escuro e misterioso onde, ela brilha.
Antes de mais, o ateísmo de Deus, que deslumbrou os eu tradutor alemão Albert Vigoleis Thelen, e é o coração sem paralelo desta obra. É o caso absolutamente solitário de alguém que subiu aos céus e encontrou a porta aberta. Indagou todos os escaninhos, e num viu Deus sentado ao espelho, orgulhoso mas deprimido, noutro viu o seu lugar vazio, sem espelho.
O espelho era a Criação do Criador e o Deus que aí se revia, com soberba e cólera, mas também com mágoa, era o Deus antigo e conhecido, o Deus que nos olha e a si mesmo se vê. Esse Deus mereceu dele pena ou compreensão, consoante o esforço era criador ou redentor, não o incenso. O que lhe interessou mesmo foi o Deus sem nome, sem qualquer tentação de se olhar ao espelho, quer dizer, de criar o mundo para depois o redimir. É o Deus que não sabe como se chama, o Deus em si, sem mundo e sem espelho, o Deus anarquista, sem princípio e fim, o único ateu absoluto.
Gnosticismo? É possível que haja por aqui um sobejo de Orígenes ou de Prisciliano, que Miguel de Unamuno tanto gostava de ver na cripta da catedral de Compostela em vez do Apóstolo, mas na verdade este Deus que não quer ser Deus, preferindo ser ateu, está mais próximo do vazio de Nietzsche que do alienígena dos gnósticos. Não foi Pascoaes que exclamou no Duplo Passaio: «Ó Nietzsche, sem o teu Anticristo, seria impossível a nova ressurreição de Cristo.»
Este grito vale a literatura portuguesa toda desde Gil Vicente. Assim depois do Auto da História de Deus (Breve Sumário da História de Deus) só temos a aparição do Cristo bêbedo na segunda parte do Duplo Passeio. Entre os dois pouco ou nada de essencial se passou.
Gil Vicente deixou uma página inacabada, que Pascoaes completou. Escreveu o derradeiro quadro da civilização judaico-cristã, a sua cena mais agónica e negra. É o quadro que estamos hoje vivendo, por entre bombas e derrames, à espera que caia o pano. Nietzsche foi o seu arauto e Pascoaes, o Zaratustra do Marão, o seu evangelista, do Duplo Passeio ao Santo Agostinho. O Anticristo que Nietzsche anunciou ao pé do Reno apareceu, afinal, embriagado de moscatel e gritando o seu ódio aos fiéis, ao pé do Tâmega.
A literatura de Pascoaes tem, por isso, um significado cósmico e universal, religioso e anti-religioso, e não apenas estético. Como ele disse, os criadores de Poesia não se confundem com os artistas do verso e não contam apenas em termos de Literatura, pois têm o interesse vital de uma flor ou de uma estrela.

António Cândido Franco
in A Phala, nº. 95, 2002.

posted by Luís Miguel Dias domingo, abril 13, 2003

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