domingo, abril 27, 2003
CRÓNICAS
Uma história de Assombração, por Luís Fernando Veríssimo. No Actual, do Expresso deste fim de semana, poder-se-ão ler mais duas Assombrações.
“(...) Mas a história mais fantástica quem contou foi a Bea. Contou que uma tia dela, que ela nem conhecera, fazendeira rica, tinha uma empregada que tratava muito mal. Uma pobre coitada, cria da estância, chamada Bibica, que passara a vida trabalhando como escrava e ainda ouvindo desaforos da patroa, uma matriarca rural do velho estilo. A Bibica morrera de desgosto e maus-tratos e sua alma voltara para se vingar da velha, assombrando a casa.
Todos os dias o quarto da velha aparecia misteriosamente arrumado, por mãos invisíveis. O fogão se acendia espontaneamente e os pratos de comida feitos por ninguém iam e voltavam da mesa flutuando no ar, a roupa era lavada e passada sem que ninguém a tocasse. Aterrorizados, todos os outros empregados fugiram de casa e nenhum parente visitava a velha, com medo da assombração.
Como visitar uma casa em que a porta da frente se abria sozinha para recebê-los e os pratos do café da manha chegavam na mesa voando? Mas decidiram que aquilo não poderia continuar assim, a velha sozinha dentro de casa com um espírito vingativo, e pediram para um padre exorcizar o fantasma. O padre foi visitar a velha, sentou-se na sala de estar, começou a dizer que vinha oferecer o consolo de Deus e seus serviços como... quando foi interrompido por uma xícara de cafezinho que entrou na sala suspensa no ar, e ouviu a velha dizer «Anda mais depressa, ó traste!» para ninguém.
Depois contou que a velha recusara sua proposta de excomungar o fantasma porque, com a fuga dos outros empregados e com a Bibica, incorpórea, fazendo tudo noite e dia, pois fantasma não precisa de dormir, estava economicamente como nunca, e feliz.
- Ela só sente falta de alguém sólido para bater com o chinelo – contou o padre, convencido, segundo a Bea, de que em certos lugares do mundo não há justiça nem nesta vida nem na outra.”
posted by Luís Miguel Dias domingo, abril 27, 2003
