quarta-feira, abril 30, 2003
CRÓNICAS
O TYSON CONTRA O TOLSTOI
Clara Ferreira Alves
Quando soube que Mike Tyson amansava à sombra das grades lendo Tolstoi e Tocqueville, Dostoiévski e Montaigne, comovi-me. Imaginei a besta posta em sossego, ruminando os clássicos num gozo miudinho e esclarecedor. Tal é o poder da literatura, cogitei. No fundo da cela e do fundo da alma – e como escreve a Agustina, a alma é u vício – via Tyson embrenhado em Milton e Shakespeare, Dante e Dickens, Goethe e Joyce, Ibsen e Proust. Nascia um homem novo, no qual a literatura tinha assente um murro à figura e feito mossa. Nascia um pugilista que tratava Flaubert por tu e era íntimo das Emas, a Bovary e a de Jane Austen. Da besta tocada pelo sopro poético elevava-se um espírito superior, uma sensibilidade estética. Entretanto, na prisão, a besta ia dando entrevistas onde citava, com abundância e conhecimento, Lenine e Rousseau. Eu pasmava, e pasmavam os jornalistas que o entrevistavam. Repórteres avisados e cínicos profissionais da imprensa americana saíam de lá proclamando o milagre dos milagres., a besta era um génio e tinha visto a luz. (...)
(...) Tyson saiu da prisão. Esmurrou Frank Bruno. Meteu-se com Don King. Meteu-se em brigas. Esmurrou uns tipos. Foi acusado de violação. Enfim, delitos menores num leitor de Tolstoi. Talvez ele estivesse a ter um de ansiedade da influência, de que fala Harold Bloom. De repente, Myke Tyson disse: «Quando estava na prisão andava todo embrulhado naqueles livros profundos. Aquela porcaria do Tolstoi. Ninguém devia ler aqueles livros.» Afinal preferia banda desenhada.
Porque é que tanta gente letrada ficou deslumbrada com a ideia do lutador lendo Tolstoi? Porque, no fundo das nossas almas de amantes da literatura – e a literatura, como alma, é u vício – estamos à espera de que os outros, os que não lêem, vejam a luz. Quem gosta de livros, depende dos livros e não passa sem os livros, tem manias de pregador. Separado do resto do mundo, e o resto do mundo lê pouco, pouquíssimo, pela biblioteca e o seu labirinto, o amante de literatura aspira à conversão do pecador, e acredita na literatura como uma força «do bem» oposta às forças do «mal» e à estupidez humana. A literatura teria o poder de domar a besta e tornar o mundo melhor. (...)
(...) Em Portugal, quando se trata de defender o cinema e o teatro, tudo o que é português e precisa de subsídio, está em vias de extinção, é património ou artesanato, a literatura é arredada dos enunciados. O património literário português, seja ele os versos de Camões, Pessoa, O`Neill ou Mourão-Ferreira, não comove ninguém. A escola ignorou, esqueceu-se. Destruiu «Os Lusíadas» e «Os Maias», não percebeu que tornar obrigatório não é ensinar a amar. (...)
(...) Tolstoi não transformou Mike Tyson. No combate entre os dois, foi Tyson que ficou KO.
in A Pluma Caprichosa I.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, abril 30, 2003