quarta-feira, abril 23, 2003
CRÓNICAS
António Lobo Antunes
Explicação aos paisanos
(…) Estava ao telefone com o pintor Júlio Pomar e depois de falarmos da saudade um do outro
(eu tão bicho do mato, nunca distingui entre a amizade e o amor)
entrámos pela conversa do trabalho dentro. O Júlio é das raríssimas pessoas a quem confidencio o que faço por existir entre nós, desde o primeiro momento, uma cumplicidade absoluta que não necessita de palavras, um princípio de vasos comunicantes que se tornou um milagre de sintonia mental. Então vou eu e digo
- Nunca começo um livro antes de ter a certeza que não sou capaz de o escrever
E de imediato, sem pausa alguma, vai o Júlio e responde
- E como é que a gente explica isto aos paisanos?
A frase é dele
- Como é que a gente explica isto aos paisanos?
tem andado comigo. Talvez possa explicar garantindo, por exemplo, que a principal dificuldade com o livro que ando a escrever consiste em que passei demasiado no romance, sem ter deixado espaço para o romance se pensar a si mesmo. E, quando a gente pensa por fora, ao passo que quando o livro se pensa a si mesmo
(e a gente ali, vigilantes)
se pensa por dentro. A obra é autónoma, e não admite intromissões do autor pelo menos durante as duas ou três primeiras versões (…)
(…) Sento-me à mesa e fico à espera: é assim que trabalho. A pouco e pouco uma espécie de onda ou seja o que for vai tomando conta de mim. A minha tarefa consiste em ficar quietinho, aceitando a tal onda ou o que for. E então chega a primeira palavra. Chega a segunda. Uma fúria calma toma conta da gente e a mão principia a mexer-se do tal lado invisível. (…)
(…) O que fica, nas tais primeiras versões, é um magma: por baixo do magma está o livro. E agora sim, chega aqui, cabeça, e ajuda-me a limpar a trazer o livro metido lá por baixo, a secá-lo, a sacudi-lo, a dar-lhe forma. E então pira-te, cabeça, outra vez, mas mantém-te aí à mão de semear, porque me vais ser útil. (…)
(…) Se tivermos à frente Tolstoi aqui à esquerda e o jornal à direita, começamos sempre pelo jornal. O problema é que o jornal da semana passada é o jornal da semana passada e Tolstoi o jornal de todas as semanas, de modo que o jornal da semana passada se deita fora e Tolstoi fica. Agora, Júlio, como é que a gente explica isto aos paisanos? (…)
in Revista Visão
(…) O que é o IVA sobre os livros senão um injusto imposto sobre a leitura? Pode um país com tão baixos índices de leitura «castigar» aqueles que lêem? Pode um país tão necessitado de desenvolvimento castigar deste modo quem procura informar-se, formar-se aceder ao conhecimento e à cultura? Pode um país sem verbas para aquisição de livros através das suas poucas Bibliotecas Públicas, encarecer ainda mais essa aquisição pelas que existem? (…)
Nelson de Matos in DNa
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, abril 23, 2003