A montanha mágica

terça-feira, abril 15, 2003

CINEMA

“Coloquemos assim: um fenómeno espiritual – isto é, significativo – é “significativo” exactamente porque extrapola os seus próprios limites, e actua como expressão e símbolo de algo espiritualmente mais vasto e mais universal, todo um universo de sensações e ideias corporificadas no seu interior com maior ou menor felicidade – eis aí a medida do seu significado.”

Thomas Mann, A Montanha Mágica.




«Juha» foi primeiramente conto, história de gentes do povo gravada no papel. «Juha» foi imaginado, delineado, pela mente do escritor finlandês Juhani Aho no já distante ano de 1912. Em «Juha» narra-se o drama do campesino do mesmo nome, Juha, que tão feliz vivia na sua bucólica e bem tratada quinta com a companheira Marja. Desfia-se igualmente o encontro destes com Shemeikka, indivíduo cosmopolita dando ares aristocráticos, conhecedor da vida e a quem a vida também conhecia bem, e – falando já do filme realizado por Aki Kaurismäki – viajante de cabelos ao vento no seu ágil descapotável vermelho. Mas Juha (Sakari Kuosmanen) é tão delicado nos seus gestos rudes de aldeão agricultor e a sua voz grossa soa tão amável... E Marja (Kati Outinen) move-se com aquela graça que advém da singela genuinidade da mulher para quem o mundo não era muito mais que o marido, a quinta e a praça onde comerciavam a sua produção; mas isso chegava-lhe, o seu olhar brilhava, a sua voz parecia perder-se naqueles campos cultivados melodiosa como o cântico das aves na Primavera. Mas eis que surgiu Shemeikka (André Wilms). Aquela sedutoramente maldita e altiva pose, o olhar vivido, a voz insinuante e bem colocada...! Shemeike representa um mundo novo, uma perturbação desconhecida, uma avalanche de novos sentimentos. E torna-se estranho, quase inacreditável mesmo, como um filme mudo e a preto e branco consegue definir dele tanta coisa em nós. Como consegue transmitir a percepção das emoções, a compreensão dos estados de alma mais simples e os mais complexos. E enquanto as personagens vivem o drama nós apreendemos com que sons e com que cores o fazem.


«Juha» é um filme triste. Daquela tristeza que não humedece a vista mas que enregela a alma. Acontece que «Juha» é igualmente um filme muito belo. Em «Juha» pressente-se uma espécie de método cartesiano adaptado ao cinema. Ou seja, nele existe um assumido esquecimento e abalroamento de quanto o cinema evoluiu tecnicamente para que a partir de um novo e primário estado pudesse operar-se a reconstrução deste sem os vícios entretanto adquiridos e ressuscitando em nós um perdido encantamento das histórias contadas na tela grande. «Juha» é também um filme de referências. Referências que vão de Godard a Dovjenko, de Renoir a Buñuel. É o próprio Kaurismäki quem o revela. E porque essas referências são facilmente detectáveis perde importância a outra revelação de Kaurismäki quando confessa gostar muito de mentir. Mas nada disso importa, sequer a mentira a existir. Porque este filme tem um efeito psicologicamente libertador sobre o espectador. Mesmo que nele se trilhem caminhos ligados à mentira e à traição, é de verdade que ele nos fala. De uma verdade cuja restituição vale a morte de um homem. E o filme vale pela sua simplicidade humana extraída da complexidade da trama que lhe dá vida. E há que o referir: se o cinema é a 7ª arte é muito por motivo de filmes como este «Juha» que esse estatuto outrora foi alcançado. Pela sua intemporalidade, pela irrepreensível e absolutamente espantosa direcção de actores. Desde a expressão corporal mais simples até ao rigor com que a identidade social de cada uma das (três) personagens foi defendida. Acrescente-se que a utilização da banda sonora alcança nesta obra uma invulgar sintonia com a acção desenvolvida. Como se fosse a música a ditar os comportamentos e não os comportamentos a sugerirem a escolha dos temas e dos registos. Registos que vão desde a música popular à música clássica sem esquecer a música moderna.

Em suma, «Juha» é um daqueles filmes que muitas vezes procuramos mas quase nunca acreditamos encontrar. É um filme onde ao vê-lo nos deixamos ir como se enlevados na surpresa e pela grandiosidade dos seus ímpetos. Ímpetos de dramatismo, esclareça-se. De tal forma assim é que a páginas tantas sentimo-nos viajar. Sentimos que partimos para um qualquer lugar sem dele pensarmos em voltar. E existe a convicção de que as opções conceptuais em termos visuais e sonoros nunca se configuram numa obsessiva formalidade ou, dito de outra forma, como se alguma vez fossem resultado de um qualquer assomo repentino de pretensiosismo autoral por parte do seu realizador. Antes se adivinha nessas opções uma lógica de amor pelo trabalho artesanal e, aí sim, reconheça-se, um certo desprezo pela industrialização de uma arte. Industrialização do cinema, claro. E para quem não temer deslocar-se a uma sala de cinema para assistir a um filme que, embora intemporal, é um filme dos nossos dias mudo e a preto e branco, para quem não temer sentir algo de especial durante o seu visionamento, «Juha» é uma fantástica experiência de cinema. Se houver essa coragem, e socorrendo-me de forma livre da letra de uma música que me diz muito, ao espectador “espera-o ondas que persistem, que nunca param de bater, esperam-no homens que resistem... antes de morrer”.


Texto in www.7arte.net.

posted by Luís Miguel Dias terça-feira, abril 15, 2003

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