domingo, abril 06, 2003
AXIOLOGIA
Porque acreditamos e defendemos valores."Todos somos responsáveis por tudo perante todos" in "Os Irmãos Karamazov" de Fiódor Dostoiévski.
(…) A Axiologia emergiu como disciplina filosófica em meados do século XIX. Foi com Rudolf Hermann Lotze que, pela primeira vez, a consideração para com o tema de estimação obteve foros de cidadania intelectual, fixando-se definitivamente na filosofia contemporânea. Ora, logo no dealbar da Axiologia – ou Filosofia dos Valores, como propôs Louis Lavelle (Lavelle, 1991a; 1991b) – surgiu uma polémica sobre a objectividade ou subjectividade dos valores, não totalmente dirimida até aos nossos dias. Desejamos as coisas porque têm valor ou as coisas têm valor porque as desejamos? Esta foi, em síntese sumaríssima, a questão que serviu de cerne ao debate teórico entre Alexius Meinong e Christian Von Ehrenfels, ainda no século XIX (Frondizi, 1992: 53-57).
Contudo, devemos ter presente que, desde que o ser humano tem consciência de si próprio e do mundo em que está inserido, há o estabelecimento de um quadro, mais ou menos coerente, acerca das suas preferências em relação a pessoas, a situações e a ciosas (Renaud, 1989: 558-559). Necessitamos de formular, desde já, uma questão: as preferências de que falamos dão-se ordenadamente em cada um de nós, ou são um produto caótico da mente humana? Devemos falar, não na produção caótica de valorações, ao arbítrio dos caprichos vivenciais, mas de pautas, ou hierarquias, axiológicas dotadas de certa coerência e plausibilidade. A obra de Max Scheler é um exemplo claro de uma ordenação axiológica apriorista.
No entanto, e dado que o jogo entre o plano objectivo, o plano subjectivo e o plano emocional nen sempre é claro, tanto para as pessoas, quanto para os povos, devemos – segundo o exposto por Risieri Frondizi – admitir que as hierarquias axiológicas são tanto mais subjectivas quanto mais nos abeiramos do topo de tal pirâmide (Frondizi, 1992: 53-57). Ainda assim, tal como refere Rudolf Rezsohazy, “o conceito de valor é inseparável da noção de preferência. Valorar uma coisa em detrimento de outra (preferir, por exemplo, os romances policiais aos livros de humor) significa que, em face de qualquer facto, situação ou problema social, o valor que determina a escolha foi adoptado ou inculcado em detrimento de outro” (Rezsohazy, 1976:6).
As hierarquias axiológicas são algo desejável? Autores houve que nos legaram elementos de meditação muito válidos (Lavelle, 1991a e 1991b; Hessen, 1980). Assim, e em termos teóricos, não nos causa reticências a consideração a ter relativamente à seguinte hierarquia de valores, considerando do menos valer para o mais valer:
- valores práticos – aqueles que têm como pólos orientadores o útil e o inútil;
- valores hedonísticos – os que se norteiam em função do prazer e o desprazer;
- valores estéticos – que têm como balizas o belo e o feio;
- valores lógicos – pautados pelo verdadeiro e o falso;
- valores éticos – aqueles que consideram a esfera do bem e do mal;
- valores religiosos – que oscilam entre o sagrado e o profano.
Johannes Hessen delimitou o campo de actuação da Axiologia à Ontologia dos Valores, à Teologia dos Valores, à Gnosiologia dos Valores e à Antropologia dos Valores (Hessen, 1980:37-341). Às categorias acabadas de referir, Manuel Ferreira Patrício acrescentou, clarividentemente, desde o horizonte da Filosofia da Educação, um quinto plano: o da Praxiologia dos Valores (Patrício, 1993: 43-47). Lembremos, contudo, que “o tipo de organização de um sistema de valores varia de uma cultura para outra. Outrora, dizia-se: a sua lógica interna não obedece em toda a parte às mesmas regras. Esta divergência é, de resto, a razão principal para a incompreensão entre povos diferentes” (Rezsohazy, 1976:7) e, inclusive, entre critérios de fundamentação civilizacional, válidos para períodos históricos diacronicamente distanciados entre si.
Temos de reter algo que Louis Lavelle entendeu com nitidez a respeito do tema que nos ocupa – “a axiologia é como que uma metafísica da sensibilidade e do querer” (Lavelle, 1991a:26) – e que só ocorre, em cada um de nós, quando se verifica o empenho interior, quando se manifesta o desejo. Deste modo, “o homem que intuiu o valor de justiça vive de maneira diferente daquele para quem o justo ou injusto são apenas ideias. O mesmo se pode dizer do homem que intuiu o valor de beleza, cuja vida se ressentirá sempre e se conformará de maneira diferente daquele que não teve possibilidade do intuir” (Santos, 1977:406). Ora, é o tipo de valores que pomos em prática e pelos quais nos jogamos, que determina o tipo de ser humano que somos, bem como a sociedade em que vivemos e, também, a sociedade em que queremos viver.
Os valores adquiridos por cada um de nós ao longo do processo de socialização, através da família, da escola, dos amigos e dos grupos de vizinhança, dos superiores e dos mecanismos de controle social, permitem que o estudioso considere a existência de valores, válidos para uma determinada pessoa e para uma dada sociedade, como sendo dotados de alguma estabilidade diacrónica. Ora, os valores que estimamos como dignos de ser cultivados, exercem a sua influência ao nível das predisposições, das aspirações, dos símbolos, das ideologias, das motivações e das atitudes que fazem mover quantos vivem numa determinada época. Se considerarmos os sistemas de decisão – objectivos, meios, projectos, decisões – temos, ao nível da actuação concreta, sistemas de acção, actos, comportamentos, procuras sociais, mobilizações, alianças mas, também, conflitos que se manifestam no quotidiano.
Uma vez adquiridos, os valores permanecerão em cada um de nós, para sempre? Tal não é possível, dado que os valores mudam a partir das necessidades, dos problemas e desafios, dos interesses e das referências que, tanto a nível pessoal, quanto a nível grupal, se impõem a uma determinada pessoa/sociedade. Deste modo, os valores ou os sistemas de valores desejados impõem, aos membros de uma sociedade, a aspiração de vir a tê-los implantados nessa mesma sociedade. Temos, assim, em termos sincrónicos, a coexistência e a conflitualidade de valores, a par da permanência e da ruptura face àquilo que se acha, num determinado tempo, axiologicamente estabelecido (Rezsohazy, 1976:10) (…)
J.M. Barros Dias
posted by Luís Miguel Dias domingo, abril 06, 2003