A montanha mágica

quarta-feira, novembro 18, 2009

Finis terrae






"Se os dois últimos livros das Confissões não são livros fáceis para quem não se interesse por exegese escriturística, o mesmo não se pode dizer do Livro XI, que continua a ser estudado ainda hoje, mesmo por pessoas a quem Santo Agostinho e a história da sua conversão não interessam minimamente. É que o Livro XI consiste numa das mais profundas investigações filosóficas de sempre à natureza do tempo, e ainda não foi possível resolver de forma satisfatória o dilema que ele propõe. O contexto é a narrativa da criação, que procede a partir do nada (ex nihilo), sendo Deus, o criador, concebido como um ser eterno e imutável. Esta doutrina da eternidade e da imutabilidade de Deus é, como já vimos, uma das componentes da herança platónica de Agostinho, e assenta na seguinte justificação: se Deus fosse mutável, seria imperfeito porque a mudança pressupõe que o ser que muda seja, em determinado momento, incompleto, que seja passível de se tornar melhor (ou pior). Assim sendo, antes da criação o tempo não existe, existindo apenas este Deus imutável, cuja vontade e cuja decisão de criar são eternas, têm lugar fora do tempo; mas, ao criar o mundo, Deus cria um sistema em que, ao contrário do que acontece Nele mesmo, há sucessão temporal. Ora, o que é exactamente o tempo?
Temos o hábito de pensar que o tempo consiste no passado, no presente e no futuro. Acontece, porém, que «o passado não mais existe e o futuro ainda não existe». Já o presente, «se permanecesse sempre presente e não se tornasse passado, não seria mais tempo, mas eternidade. Portanto, se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como poderemos dizer que existe, uma vez que a sua razão de ser é a mesma pela qual deixará de existir?»
Podemos dizer que medimos o tempo pela sua passagem, pela sucessão do passado, presente e futuro. Mas isso é o mesmo que dizer que o tempo vai nascendo do que ainda não existe, passando por aquilo que não tem duração para aquilo que já não existe. Por outro lado, como podemos medir aquilo que não existe? Há quem diga que o tempo é o movimento dos corpos; mas os movimentos dos corpos são variáveis, os corpos movem-se a diferentes velocidades, o mesmo corpo umas vezes está em movimento, outras vezes está em repouso; o que acontece na realidade é que medimos o tempo em que os corpos se movem. Mas como fazê-lo, dada a natureza do passado, do presente e do futuro, e dado que nada existe efectivamente a medir, a não ser o momento presente, que está constantemente a desaparecer, que se encontra em permanente mudança? Agostinho é levado a concluir que a passagem do tempo não é objectiva, não é algo que ocorra na própria realidade. Quando falamos da passagem do tempo, estamos a referir-nos às alterações que se dão dentro de nós: à expectativa do que ainda não existe, à atenção ao que está a contecer, à memória daquilo que já passou. As coisas mudam de posição de acordo com a nossa perspectiva temporal, que é limitada, e é a isso que chamamos tempo.
Já do ponto de vista de Deus não há mudança, nem sequer na criação. Toda a criação está sempre presente a Deus. Do nosso ponto de vista, as coisas mudam, mas para Deus não mudam; nem tão-pouco há mudança no conhecimento de Deus, porque o conhecimento de Deus é, tal como o próprio Deus, imutável. Todas as coisas estão sempre presentes a Deus.
Somos levados a concluir que o tempo está relacionado com a percepção humana (embora Agostinho não apresente propriamente as coisas nestes termos). Se nós tivéssemos a percepção perfeita que Deus tem das coisas, não haveria tempo. Nesse sentido, o tempo é um artefacto subjectivo, um defeito da nossa percepção humana. As nossas noções da passagem do tempo, de um passado e de um futuro inexistentes, e de um presente que não dura -- todas essas noções são ilusórias. Curiosamente, há hoje muitos filósofos da ciência que estão de acordo com este ponto de vista; que, embora não aceitem a posição de Agostinho acerca da criação do mundo, consideram que o tempo é essencialmente subjectivo, não existindo sucessão temporal no universo, pelo menos tal como a concebemos na nossa vida corrente.
Naturalmente que Santo Agostinho como os filósofos em geral têm um problema a resolver: a relação entre o livre-arbítrio e o futuro. Com efeito..."

Anthony O`Hear (trad. Maria José Figueiredo), Os Grandes Livros, Alêtheia Editores, 2009.


"Cabe-lhe a ela o turno do meio dia (sem grande rigor). Exactidão, só com a ajuda de relógios, e relógios... Bem, o de caixa alta desapareceu: já não se ouve o martelo de cobre ao fundo do corredor; avariou-se a corda e, embora o tio quisesse consertá-la (chaves de fendas, solda, óleo, parafusos, livros folheados à pressa), veio um homem da vila, levou a caixa e o maquinismo para a carroça que esperava no pátio, e até hoje. O do pai (ponteiros luminosos, tampa e corrente de prata), sempre em cima da cómoda holandesa, foi pelo mesmo caminho. Revisão geral, no relojoeiro, há quanto tempo? Ninguém acredita."

Carlos de Oliveira, Finisterra, Assírio & Alvim, 2003.


"Se os negacionistas da história que duvidam do facto da evolução são ignorantes em relação à biologia, aqueles que pensam que o mundo começou há menos de dez mil anos são piores que ignorantes, pois a sua ilusão roça a perversidade. Negam não apenas os factos da biologia mas também os da física, geologia, cosmologia, arqueologia, história e química. Este capítulo explica-nos como as idades das rochas e dos fósseis estão incrustadas neles. Apresenta as provas de que a escala de tempo em que a vida se desenvolveu no nosso planeta é medida não em milhares de anos mas em milhares de milhões de anos.
Recordemos que os cientistas evolucionistas são como detectives que chegam demasiado tarde à cena do crime. Para descobrir o momento em que as coisas aconteceram, dependemos de vestígios deixados pelos processos dependentes do tempo --ou seja, por relógios em sentido lato. Uma das primeiras coisas que um detective faz quando investiga um homicídio é pedir a um médico ou patologista que calcule a hora do óbito. Muito depende desta informação, e nos romances policiais atribui-se uma reverência quase mística à estimativa do patologista. A «hora do óbito» é um facto basilar, em redor do qual o detective formula conjecturas mais ou menos rebuscadas. Mas esta estimativa está, como é evidente, sujeita a erro, um erro que pode ser medido e que é considerável. O patologista recorre a vários processos dependentes do tempo para calcular o momento do óbito: o corpo arrefece a uma velocidade característica, o rigor mortis ocorre numa determinada fase, etc. São estes os «relógios», relativamente imprecisos, disponíveis para o investigador de um homicídio. Os relógios ao dispor do cientista evolucionista são bem mais exactos -- em relação à escala de tempo envolvida, claro, não no sentido comum do termo! A analogia com um relógio de precisão é mais convincente para uma rocha do Jurássico nas mãos de um geólogo do que para um cadáver que arrefece nas mãos de um patologista.
Os relógios construídos pelo homem funcionam em escalas de tempo muito curtas pelos padrões da evolução --horas, minutos e segundos-- e os processos dependentes do tempo que utilizam são rápidos: o balançar de um pêndulo, a rotação do cabelo de um relógio, a oscilação de um cristal, a combustão de uma vela, o escoamento de uma vasilha de água ou de uma ampulheta, a rotação da Terra (registada por um relógio de sol). Todos os relógios exploram algum processo que acontece a uma taxa estacionária e conhecida. Um pêndulo balança a uma taxa constante, que depende do seu comprimento, mas não, pelo menos em teoria, da amplitude da oscilação ou da massa do pêndulo na extremidade. Nos relógios de caixa alta o pêndulo está ligado a um escape que acciona uma roda de coroa; a rotação desta é depois convertida no movimento dos ponteiros das horas, dos minutos e dos segundos. Os relógios de pulso com mecanismo de cabelo funcionam de maneira semelhante. Os relógios digitais exploram um equivalente electrónico do pêndulo: a oscilação de certos tipos de cristais quando recebem a energia de uma bateria. Os relógios de água e de vela são muito menos exactos, mas foram úteis antes da invenção dos relógios que contabilizam acontecimentos. Estes dependem não da contagem de coisas, como os relógios de pêndulo ou digital, mas da medição de uma grandeza. Os relógios de sol são dispositivos inexactos de medição do tempo (1). Mas a rotação da Terra que é o processo dependente do tempo em que se baseiam, é exacta na escala temporal do relógio mais lento a que chamamos calendário. Isto sucede porque nessa escala temporal já não é um relógio medidor (um relógio de sol mede o sempre cambiante ângulo do Sol), mas um relógio contabilizador (contando ciclos dia/noite).
Quer os relógios contabilizadores, quer os medidores estão disponíveis na escala temporal lentíssima da evolução. Mas para investigar a evolução não precisamos apenas de um relógio que indique o tempo presente, como o relógio de sol, nem de um relógio de pulso. Precisamos de algo parecido com um cronómetro, que possa ser reiniciado. O nosso relógio evolutivo precisa de ser calibrado em dado momento, para que possamos calcular o tempo transcorrido desde o ponto de vista inicial e obter, por exemplo, a idade absoluta de um objecto como uma rocha. Os relógios radioactivos para datar rochas ígneas (vulcânicas) são calibrados no momento em que a rocha se forma pela solidificação da lava fundida.
Felizmente, há uma série de relógios naturais nestas condições. A existência desta variedade é uma coisa boa, porque podemos usar alguns relógios para verificar a excatidão de outros. E, felizmente, eles cobrem uma gama incrivelmente vasta de escalas de tempo evolutivas estendem-se por sete ou oito ordens de grandeza. Vale a pena explicar o que isto significa.

(1) Sou um relógio de sol, e faço mal
Aquilo que um relógio de pulso faz bem
Hillaire Belloc
"


Richard Dawkins (trad.Isabel Mafra), O Espectáculo da Vida A Prova da Evolução, Casa das Letras, 2009.



posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, novembro 18, 2009

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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