segunda-feira, novembro 06, 2006
Pasolini is me
Com a devida vénia ao Viver a Sua Vida:«Não existe nenhuma boa razão prática que justifique a supressão de um ser humano, mesmo nos primeiros estádios da sua evolução. Sei que em nenhum outro fenómeno da existência se encontra uma tão furiosa, total e essencial vontade de vida como no feto. A sua vontade de actualizar a potencialidade que é, percorrendo com uma rapidez fulminante a história do género humano, tem qualquer coisa de irresistível e por isso de absoluto e jubilatório. Mesmo se é um imbecil que vai nascer.»
«Os partidários extremistas do aborto (quer dizer, quase todos os intelectuais «esclarecidos» e as feministas) falam deste como de uma tragédia feminina, na qual a mulher está sozinha com o seu terrível problema, como se, nesse momento, todo o mundo a tivesse abandonado. Compreendo. Mas poderia acrescentar que, quando a mulher estava na cama, não estava sozinha. Por outro lado, pergunto-me como é que os extremistas recusam a retórica especiosa da «maternidade» com uma repulsa tão ostentatória, quando aceitam de forma totalmente acrítica a retórica apocalíptica do aborto.»
«Para o macho, o aborto tem uma significação simbólica de libertação: ser incondicionalmente a favor do aborto parece-lhe constituir um brevet de inteligência esclarecida, de progressismo, de ausência de preconceitos e de capacidade de provocação. É, em suma, uma bela chalaça (dá prazer).»
«(...) Nunca falei de uma vida em geral, mas sempre desta vida, desta mãe, deste ventre, desta criança que irá nascer. Evitei toda a generalização.»
«Que a vida é sagrada é evidente: é um princípio ainda mais forte que todo o princípio democrático e é inútil repeti-lo.»
«Entretanto, por compensação, este novo poder desenvolveu ao máximo a sua única possibilidade de sagrado: o carácter sagrado do consumo como rito e, naturalmente, da mercadoria como fétiche. Nada se opõe já a isso. O novo poder já não tem qualquer interesse (ou necessidade) em disfarçar-se com Religiões, Ideais, e outras coisas do género, tudo o que, em suma, Marx desmascarou.
Como frangos de capoeira, os italianos absorveram imediatamente a nova ideologia irreligiosa e anti-sentimental do poder; ela é a força de atracção e de convicção da nova qualidade de vida que o poder promete, e esta é, simultaneamente, a força dos meios de comunicação (sobretudo da televisão) de que o poder dispõe. Como frangos de capoeira, os italianos aceitaram, de seguida, o novo carácter sagrado, não explícito, da mercadoria e do seu consumo.»
«Prezzolini (...) não compreendeu que o país no qual viveu durante trinta e dois anos não é o reino da democracia, mas do pragmatismo.»
«O novo poder burguês necessita, da parte dos consumidores, de um espírito completamente pragmático e hedonista: um universo mecânico e puramente terrestre no qual o ciclo da produção e do consumo possa cumprir-se segunda a sua natureza própria. Não há mais lugar para religião e, sobretudo, para a Igreja.»
«Os novos industriais e os novos técnicos são completamente laicos, duma laicidade que não se mede mais com a religião. Esta laicidade é um valor novo nascido na entropia burguesa na qual a religião é concebida como autoridade e forma de poder enfraquecidos; não sobrevive senão na medida em que permanece um produto natural de enorme consumo e uma forma folclórica ainda explorável.»
«(...) Os bens supérfluos tornam a vida supérflua.»
«(...) O que interessa a um tal poder não é um casal gerador de crianças (proletárias), mas um casal consumidor (pequeno-burguês): ele tem já, portanto, in pectore a ideia da legalização do aborto (como tinha já tinha a da ratificação do divórcio).»
«O aborto é o primeiro, e único, caso para o qual os radicais e todos os partidários do aborto, democratas puros e duros, ao apelarem à Realpolitik, recorrem, portanto, à prevaricação "cínica" dos factos estabelecidos e do bom senso.»
«Poderemos deslizar tranquilamente sobre um caso de consciência pessoal relativo à decisão de fazer ou de não fazer vir a este mundo alguém que quer absolutamente vir aqui (mesmo se não é senão para ser pouco mais que nada)? Será necessário criar a todo o custo o precedente «incondicionado» de um genocídio, unicamente porque o statu quo o quer? Bem, de acordo, tu [Moravia] és cínico (como Diógenes, como Menipo... como Hobbes) tu não crês em nada, a vida do feto é uma afectação romanesca, e fazer um caso de consciência deste problema, uma tolice idealista... Mas essas não são lá muito boas razões.»
SCRITTI CORSARI (trad. a partir da versão francesa: Écrits Corsaires, Flammarion, 1976)
Gosto do Trento na Língua, Um blogue de Protestantes e Católicos.
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, novembro 06, 2006