A montanha mágica

terça-feira, julho 13, 2010

levou a mão ao bolso e tirou o ramo em forquilha com
a fisga para caçar esquilos






pormenor de The Sacrifice of Isaac by Rembrandt, fotografia LMD, 2010.



Desde há uns anos que na aldeia se ouve, muitas pessoas, dizer que a geração dos netos foi dando cabo das empresas têxteis que foram herdando, que ao longo de muitos anos empregaram muitos milhares de homens e mulheres crianças e adolescentes que dali recebiam o seu ordenado para poderem viver.
Enriqueceram os patrões.
Os trabalhadores com os ordenados mínimos, quase pouco mais, conseguiram verdadeiros feitos.
Os filhos e, principalmente, os netos chegados a administradores e a gestores principais já não passavam sem os mercedes de última geração ferraris e casas na Foz e cavalos e outros que tais. Para mandar lá dentro nas fábricas contrataram engenheiros e doutores.

Thomas Mann, n`Os Buddenbrook, conta magistralmente esta história, por dentro, ontologicamente por dentro, na passagem de um século para outro, do XIX para o XX, do que passou a ser diferente, do que se perdeu, da mudança, é que de 1815 a 1914, diz-se, escreve-se, foram 100 anos de paz, mas depois... o final de A montanha mágica...

Claro que Visconti é excelente, e agora o Eu sou o amor, também é um sinal de agora, mas gostei. Mas salta à vista que.

Queria era chegar a Bolaño. Não compreendo como é que um escritor diz aos seus familiares e aos seus amigos e que depois ambos os dois dizem aos jornalistas e ao mundo editorial que o 2666 devia ser publicado numa primeira fase em cinco livros, um por ano, e depois de morrer as pessoas responsáveis pela obra dele não fazem o que ele disse porque (o Direito permite quase tudo, a Filosofia justifica quase tudo, a História vasculha tudo, a Sociologia arranja organização em tudo...). Não percebo nada do mundo editorial mas a sério que não compreendo.
Veja-se que, na versão portuguesa, até a nota dos herdeiros do autor aparece primeiro do que a epígrafe de Baudelaire, o que, bem vistas as coisas, até faz sentido: "Um oásis de horror no meio de um deserto de aborrecimento."
Atente-se ao segundo período da mesma nota: "Depois da sua morte e após a leitura, estudo da obra e do material de trabalho deixado por Roberto (...) surge outra consideração de ordem menos prática: o respeito ao valor literário da obra, que faz com que, de forma conjunta [Ignacio Echevarría] com Jorge Herralde, tenhamos alterado a decisão de Roberto..."
Uma pessoa fica sem palavras, hilariante, não é?, e lamento imenso que em vez de cinco se tenha feito um, mas, tentando olhar para um canto do mundo, ironicamente, está tudo certo.

Agora, literatura comparada, 2666: "Por vezes, quando Abraham Ansky se reunia com os seus amigos, costumava gracejar a esse respeito e dizia, falando da forma como o seu filho era um miúdo mimado, que às vezes pensava que deveria tê-lo sacrificado quando ainda era pequeno. Os ortodoxos da aldeia escandalizavam-se ou fingiam que se escandalizavam e outros riam-se abertamente quando Abraham Ansky concluía: mas em vez de o sacrificar a ele sacrifiquei uma galinha! Uma galinha!, uma galinha! não um cordeiro nm o meu primogénito, mas sim uma galinha!, a galinha dos ovos de ouro!"

Sherwood Anderson, Winesburg, Ohio: "Em silêncio, Jesse e David continuaram rodando estrada fora até atingirem o lugar onde Jesse uma vez clamara por Deus e deixara o neto assustado. A manhã estivera luminosa e alegre, mas agora começara a soprar um vento frio e as nuvens esconderam o sol. Quando David viu o sítio onde estavam começou a tremer de medo, e quando se detiveram junto à ponte onde o riacho descia por entre as árvores, teve vontade de saltar da charrete e fugir dali.
No espírito de David cruzavam-se dezenas de planos de fuga, mas quando Jesse deteve o cavalo e saltou a cerca para entrar na floresta ele seguiu-o. "É absurdo estar com medo. Não vai acontecer nada", disse para si próprio enquanto seguia com o cordeiro nos braços. Havia alguma coisa no ar indefeso do pequeno animal apertado nos seus braços que lhe deu coragem. Sentia os batimentos rápidos do coração do bicho e isso fez com que o seu próprio coração batesse menos rapidamente. Enquanto seguia apressado atrás do avô, desatou a corda que segurava as quatro patas do cordeiro. "Se acontecer alguma coisa fugimos os dois", pensou ele.
No bosque, depois de se terem afastado bastante da estrada, Jesse parou num espaço aberto entre as árvores onde havia uma clareira coberta de pequenos arbustos que descia até ao riacho. Continuava calado mas começou de imediato a erguer um monte de ramos secos a que depois lançou fogo. O rapaz estava sentado no chão com o cordeiro nos braços. A sua imaginação começou a atribuir significado a cada movimento do velho e ele a ficar cada vez mais assustado. "Tenho de borrifar a cabeça do rapaz com o sangue do cordeiro", murmurou Jesse quando a lenha começou a arder em chamas impetuosas, e tirando uma faca comprida do bolso voltou-se e atravessou a clareira num passo rápido em direcção a David.
O terror apoderou-se da alma do rapaz. Fê-lo sentir náuseas. Por instantes deixou-se ficar sentado perfeitamente imóvel e depois de corpo inteiriçado levantou-se de um salto. A cara ficou brancA como a lã do cordeiro, que vendo-se agora subitamente liberto, corria encosta abaixo. David correu também. O medo fazia com que os pés voassem. Saltava freneticamente por cima dos arbustos e dos troncos caídos. Enquanto corria levou a mão ao bolso e tirou o ramo em forquilha com a fisga para caçar esquilos. Quando chegou ao riacho que estava baixo e espadanava entre as pedras , enfiou-se na água e olhou para trás quando viu o avô que continuava a correr atrás dele empunhando aquela faca comprida não hesitou, baixou-se, escolheu uma pedra e pô-la na fisga. Com toda a força que tinha esticou as fortes tiras de borracha e a pedra silvou pelos ares. Acertou em Jesse, que esquecera por completo o rapaz e agora persguia o cordeiro, em cheio na cabeça. Com um gemido, mergulhou para diante e caiu quase aos pés do rapaz. Quando David o viu imóvel e aparentemente morto, o seu terror aumentou desmedidamente. Transformou-se em pânico enlouquecido."

E os caminhos de Deus são certamente insondáveis.


posted by Luís Miguel Dias terça-feira, julho 13, 2010

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