terça-feira, outubro 13, 2009
a lança entra na nuca, sai pela boca, levando a língua na ponta
fotograma de Mal nascida, de João Canijo"DRAMA - Outra das consequência mais óbvias destas adaptações é a necessidade da violência: acontecimentos dramatica e visualmente marcantes. Porquê esta violência no contexto sociológico português?
João Canijo - São duas coisas que se juntam. A primeira é que eu sempre achei que a violência profunda da sociedade portuguesa era imensa. E que estava disfarçada. Não é disfarçada: as pessoas não a querem ver. Não querem olhar para ela. Mas ela existe de uma maneira muito profunda e muito violenta. Por outro lado, as tragédias gregas, como lidam com sentimentos primordiais, são absolutamente violentas. Portanto, juntam-se as duas coisas. Junta-se a fome com a vontade de comer.
DRAMA - Embora haja uma diferença: as tragédias nunca mostram. É sempre alguém que conta o que aconteceu. Enquanto que, nos filmes do João Canijo, essa violência é muito física e visual.
JC - Mas [as tragédias] contam de uma maneira muito pormenorizada e muito sanguinária. Não sei se é na versão do Ésquilo, mas contam mesmo o número de machadadas que o Agamémnon leva. E os gregos gostavam muito de contar essas partes. Se lerem a Ilíada, há uma descrição em que o Homero - ou seja quem for - descreve que a lança entra na nuca, sai pela boca, levando a língua na ponta. É bastante gore.
DRAMA – Falou, em diferentes entrevistas (acho que a propósito do "Noite Escura"), que quis afogar a tragédia. A tragédia, no sentido dado pelos gregos, é hoje impossível?
JC - Acho que não. A ideia de afogar a tragédia era uma ideia conceptual, que tem a ver com uma coisa que me preocupava na altura e que ainda me preocupa, que vem do Matisse. Um dos grandes pontos de batalha do Matisse era a preocupação em não ter no quadro o elemento preponderante. Todos os elementos do quadro deviam ter o mesmo valor. Ao contrário da perspectiva que dirige o olhar para o ponto central do quadro. O Matisse pretendia o contrário: que o olhar não fosse dirigido para nenhum lado particular do quadro e que o espectador fosse descobrindo o que quisesse. É nesse sentido que eu queria afogar a tragédia."
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, outubro 13, 2009