quinta-feira, janeiro 24, 2008
"Só raramente uma geração como a nossa se postou de forma tão desinteressada diante de toda a ética e programática. A questão académica de um sistema ético surge como a mais supérflua de todas as questões. O motivo não reside numa indiferença ética da nossa época, mas, justamente ao invés, numa circunstância incómoda, que até agora jamais existira na história ocidental, em virtude da massa de questões éticas concretas e reais. Numa era em que a solidez dos ordenamentos vitais existentes permitia, quando muito, os pecadilhos, quase sempre encobertos, da fraqueza humana, e o criminoso, como anormal, era subtraído ao olhar escandalizado ou compassivo da sociedade, o ético, como problema teórico, poderia ser interessante. Hoje há, de novo, malvados e santos e, decerto, em plena claridade. Do cinzento de um dia de chuva nasceu a nuvem negra e o clarão brilhante do trovão. Os contornos estão muito límpidos. A realidade expõe-se. As personagens de Shakespeare andam à nossa volta. O malvado ou o santo, porém, pouco ou nada têm a ver com programas éticos, surgem de profundidades originárias, escancaram, com o seu desaparecimento, os abismos infernais e divinos de onde provêm, e deixam-nos lançar rápidos olhares para mistérios jamais imaginados. Pior do que a acção má é ser mau. Que um mentiroso diga a verdade é pior do que alguém que ama a verdade profira uma mentira; que um misantropo pratique o amor fraterno é pior do que alguém que ama o homem seja, por seu turno, vencido pelo ódio. Melhor do que a verdade na boca do mentiroso é ainda a mentira, melhor do que o acto de amor fraterno do misantropo é o ódio. Não se trata, pois, de um pecado como os outros."
Dietrich Bonhoeffer (trad. Artur Morão), Ética, Assírio Alvim, 2007.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, janeiro 24, 2008