domingo, janeiro 29, 2006
"Enoch também queria falar, mas não sabia como, em demasia demasiado excitado para se exprimir com naturalidade. Se o tentava fazer, embrulhava-se e gaguejava, e a voz soava-lhe estranha e alta, o que o levava a interromper-se. Não ignorava o que pretendia dizer, mas achava que nunca teria possibilidade de coligir uma frase. Quando estava em discussão um quadro pintado por ele, Enoch desejaria declarar mais ou menos isto: "Os senhores não atingem o ponto... O quadro que estão a ver não consiste nas coisas que vêem e sobre as quais se pronunciam. Há muito mais, algo que não descobrem. Reparem ali naquele, junto da porta, em que incide a luz vinda da janela. O trecho sombrio da estrada, que talvez não hajam notado, é o princípio de tudo. Existe perto um grupo de sabugueiros, como os que crescem lá no caminho de Winesburg Ohio, e entre os sabugueiros esconde-se qualquer coisa. É uma mulher, caiu de cavalo e o cavalo fugiu, desaparecendo da vista. Observem como o velho que conduz o carro olha com ansiedade em sua volta. Ele chama-se Thad Grayback e tem uma quinta para a banda da estrada. Leva grãos para Winesburg, que serão utilizados no moinho de Comstock, e desconfia que há um não sei quê oculto nos salgueiros. Mas não tem a certeza.
"É uma mulher, nada mais! Uma mulher, e como é deliciosa! Está ferida, sofre, porém não emite qualquer som. Reparem que jaz absolutamente quieta, quieta e branca, e a sua beleza espalha-se sobre todas as coisas. Eu não tentei pintar a mulher, como podem supor; é bela de mais para ser pintada. Que estupidez falar de composição e do resto! Por que não olham para o céu e depois não fogem como eu fazia quando em pequeno, lá na minha terra de Winesburg Ohio?"
Sherwood Anderson (trad. Jorge de Sena), "Solidão" in Folhas Vermelhas e outros contos americanos, Colecção 2 horas de leitura, Público, 2004.
posted by Luís Miguel Dias domingo, janeiro 29, 2006