quinta-feira, julho 08, 2004
Gente de Dublin de Joyce e uma Viagem por Nova Iorque de Dos Passos (2)
Nova Iorque
"- Qu`é que me diz a vir servir-me? - A voz da mulher soou, estridente, aos ouvidos de Harland, como o ranger dum pedaço de giz sobre uma ardósia.
- Qu`é que quer? - rosnou o homem por detrás do balcão.
A mulher começou a soluçar.
- Aquele pergunta-me o qu`é qu`eu quero... Não`tou habituada a que me falem com essa brutalidade.
- Então se há alguma coisa que queira, pode vir buscá-la... Serviço, a estas horas da noite...!
Harland sentia o cheiro a uísque no hálito da mulher que soluçava. Levantou a cabeça e olhou-a. Ela retorceu a boca mole num sorriso e inclinou a cabeça na direcção dele.
- Senhor, eu não`tou habituada a ser tratada com brutalidade. Se o meu marido fosse vivo, ele não teria esse atrevimento. Quem julga ele qu`é pra medizer a que horas da noiteé qu`uma senhora deve ser servida, aquele fuinha? - Inclinou a cabeça para trás e riu-se de tal modo que o chapéu lhe descaiu para a nuca. - É isso qu`ele é, um fuinha, a insultar uma sehora com aquela história das horas da noite.
Tinham-lhe caído para o rosto algumas madeixas de cabelos grisalhos tingidas de hena nas pontas. O homem do casaco branco dirigiu-se à mesa.
- Oiça lá, Mãe McCree, olhe que eu ponho-a fora daqui, se fizer distúrbios... Qu`é que quer?
- Quero um níquel de doughnuts - disse ela, fungando, com uma olhadela oblíqua para Harland.
Joe Harland enterrou novamente o rosto no côncavo do braço e tentou dormir. Ouviu o prato ser colocado sobre a mesa, seguido de movimentos desdentados da boca da mulher e de um ocasional ruído de sucção quando ela bebia o café. Tinha entrado um novo cliente que estava a falar com o homem do balcão num rosnido baixo.
- Senhor, senhor, não é horrível ter vontade de beber um copo? - Ele ergueu de novo a cabeça e deparou com os olhos dela, de um azul-baço de leite aguado, cravados nele. - Que é que vai fazer agora, filho?
- Só Deus sabe.
- Pela Virgem e plos Santos, devia ser bom ter uma cama e uma camisa-de-dormir de renda bem bonita e um homem simpático como tu, filho...senhor.
- Só isso?
- Olhe, senhor, se o meu pobre marido fosse vivo, ele não deixava que me tratassem assim. Perdi o meu marido no General Slocum, até parece que foi ontem.
- Ele não teve assim tanto azar.
- Mas morreu em pecado, sem uma oração, filho. É terrível morrer em pecado...
- Raios, quero dormir."
John Dos Passos, "Manhattan Transfer", Publicações Europa-América.
Dublin
"- Quem é este homem? Como se chama e qual é a morada?
Um rapaz com fato de ciclista abriu caminho pelo ajuntamento. Ajoelhou prontamente ao pé do homem e pediu água. O gerente também se ajoelhou para ajudar. O rapaz lavou o sangue da boca do ferido e, depois, pediu brandy. O gerente repetiu a ordem vom voz autoritária, até que um criado veio a correr com o copo. Deitaram-lhe o brandy pela garganta abaixo. Poucos segundos depois ele abriu os olhos e olhou em redor, para o círculo de caras, e, percebendo, tentou levantar-se.
- Está bem agora? - perguntou o rapaz de fato de ciclista.
- Isto não é nada - disse o homem, fazendo um esforço para se levantar.
Ajudaram-no a pôr-se de pé. O gerente disse qualquer coisa acerca de um hospital e alguns dos circunstantes deram conselhos. O chapéu de seda amolgado foi-lhe colocado na cabeça. O gerente perguntou:
- Onde é que vive?
O homem, sem responder, começou a puxar as pontas do seu bigode. Tomou o acidente como dendo sem importância. Aquilo não era nada, disse, «unicamente um pequeno acidente». Falava muito cerrado.
- Onde é que vive? - repetiu o gerente.
Pediu para lhe arranjarem um trem. Enquanto o caso estava a ser debatido, um outro homem alto e ágil, aloirado, veio de um canto do bar. Vendo o espectáculo, chamou:
- Olá, Tom! Que foi que aconteceu?
- Não foi nada - disse o primeiro.
Aquele que chegara, olhou para o deplorável estado do outro e, voltando-se para o agente, disse:
- Está bem, senhor. Eu o levarei a casa.
O polícia tocou no boné e respondeu:
- Está bem.
- Mr. Power, agarrando o seu amigo pelo braço, perguntou:
- Não tens ossos partidos? Podes andar?
O rapaz de fato de ciclista agarrou-lhe no outro braço, e a multidão dividiu-se.
- Como é que te meteste nesta embrulhada? - perguntou Mr. Power.
- O senhor caiu pelas escadas abaixo - disse o rapaz.
- Estou-lhe muito agradecido, senhor - disse o ferido.
- Não tem de quê.
- E temos uma coisinha a...?
- Agora não. Agora não."
James Joyce, "Gente de Dublin".
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, julho 08, 2004