quinta-feira, junho 12, 2003
CRÓNICAS
"Preâmbulo do projecto da futura Constituição Europeia”
Caro JPP , como pode constatar a História, não tem estado apenas arredada dos blogs. O que é grave. Por isso mesmo, subscrevemos estes dois textos, publicados no jornal Público, um na quinta-feira, por José Pacheco Pereira e outro no domingo por Frei Bento Domingues. Um de um agnóstico e outro de um crente. Duas visões diferentes sobre a história do cristianismo, duas visões idênticas sobre a sua importância na história da Europa.
A Europa do "Preâmbulo" da "Constituição Europeia"
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA
Quinta-feira, 05 de Junho de 2003
Não é preciso ir mais longe do que o "projecto de preâmbulo do tratado que institui a Constituição" de responsabilidade do Praesidium da Convenção, para compreendermos os múltiplos problemas políticos e ideológicos que a chamada "Constituição Europeia" levanta. Esse curto texto de uma página pretende ser a principal referência de enquadramento de toda a Constituição, mas a versão que aí se dá da história fundacional da Europa é falsa e ideologicamente sectária.
Vamos ao texto. O texto começa bem, mas o mérito é de Tucídides. Ele abre com uma bela citação do autor da "Guerra do Peloponeso": "A nossa Constituição chama-se 'democracia' porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas de todo o povo." Deixemos de passagem a observação de que o "povo" de que falava Tucídides não incluía os bárbaros, os escravos e as mulheres, porque se pode aceitar que, na genealogia da palavra "democracia" de hoje, está a expressão usada por Tucídides.
Até aqui tudo está bem. O problema é que a seguir faz-se imediata referência à Europa "continente portador de civilização" alicerçada nos "valores em que se funda o humanismo", esboçando-se uma espécie de história desse processo cultural que conduziu à Europa na qual os constituintes se reconhecem. Ora, do ponto de vista histórico, a principal omissão e falsificação do "preâmbulo" é a ausência de qualquer referência ao cristianismo como elemento fundador da Europa. O texto diz o seguinte:
"Inspirando\u2011se nas heranças culturais, religiosas e humanistas da Europa, que, alimentadas primeiro pelas civilizações helénica e romana, marcadas pelo elã espiritual que a percorreu e que continua a estar presente no seu património, e depois pelas correntes filosóficas do Século das Luzes, enraizaram na vida da sociedade a sua percepção do papel central da pessoa humana e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, bem como do respeito pelo direito."
Deixo aqui de parte a polémica sobre se a Constituição devia ou não incluir o nome de Deus, mas, se neste "preâmbulo", se pretende fazer uma síntese das grandes correntes civilizacionais da Europa, a ausência do cristianismo só pode ser ideologicamente motivada. Percebe-se melhor o sentido dessa ausência pela valorização directa do papel daquilo a que se chama as "correntes filosóficas do Século das Luzes". Não é difícil reconhecer a vulgata da Revolução Francesa, como fundadora da contemporeneidade da história, tal como é descrita pela tradição jacobina e "progressista" do positivismo e racionalismo francês.
Eu sou agnóstico e defendo a separação da Igreja e do Estado, mas conheço o pouco de história necessária para saber que a Europa, enquanto unidade política, é muito mais um resultado do cristianismo do que de qualquer outra coisa. É correcto referirem-se as tradições greco-latinas, já é um pouco bizarra a falta de referência ao judaísmo, mas a Europa, tal qual é, é o resultado da fusão de uma unidade política, o império romano, com uma religião oriental, o cristianismo. Essa unidade é que fez a Europa, tanto mais que o império romano não era verdadeiramente europeu, mas mediterrânico, e, durante muitos séculos, teve uma parte substancial dos seus domínios fora da Europa. É na baixa Idade Média, na progressiva identificação dos reinos bárbaros com o cristianismo, favorecida pela resistência à expansão do islão, que a Europa se forma enquanto República Cristã.
É aliás através do cristianismo romanizado que grande parte do adquirido civilizacional do passado é transmitido. Apropriando-se da filosofia grega (mais do que da cultura que teve de esperar pela Renascença), da cultura latina, em particular do direito romano, sob a égide do poder espiritual e temporal da Igreja latina, a Europa formou-se de facto contra o islão. Os únicos momentos em que a Europa se uniu até ao século XVIII, como na batalha de Lepanto, foi contra o islão. Eu sei que hoje é politicamente incorrecto dizê-lo, mas perceba-se que na história europeia do século IX até ao século XVIII, este é o traço dominante.
Por outro lado, a herança do Século das Luzes não é unívoca nem inequívoca. Ideologias como o comunismo são filhas tardias das ideias desse século, mas com uma genealogia impecável. Por isso, o texto ilude que, na história concreta dos povos, a Europa foi o continente que deu origem a ideologias que esmagaram esses mesmos direitos humanos de que o "preâmbulo" se reclama. Não foi na América que nasceu o fascismo e o comunismo, foi na Europa.
Mesmo no plano político, na nossa percepção das liberdades, o "preâmbulo" não pode centrar-se no modelo da Revolução Francesa. Ignorar o enorme papel da Revolução inglesa e americana, das instituições "peculiares" dos ingleses (que E.P. Thompson tão bem descreve) como o parlamentarismo, o "habeas corpus", o julgamento por júri, reduz o adquirido do "humanismo", à "liberdade, igualdade e fraternidade" jacobinas, espalhadas pela Europa pelas tropas de Napoleão. Se excluirmos a contribuição do pensamento anglo-saxónico sobre as "liberdades", em particular quando esse pensamento tem uma génese conservadora ou, mesmo no século XX, anticomunista, estamos dependentes da tradição revolucionária francesa que produziu o terror e uma apologia e adoração do Estado, que abriu caminho ao comunismo totalitário.
O "preâmbulo" da Constituição sugere-nos que Diderot, d'Alembert, Kant são os pais do humanismo europeu. Mas fazê-lo excluindo Burke, Toqueville, Adam Smith, ou mesmo os federalistas americanos, reduz assim o nosso entendimento de liberdade ao estado republicano, "revolucionário" mas sem tradição de tolerância, "democrático" mas não liberal. E a liberdade económica? Não conta? E o papel da "tradição"? Não existe?
Muitos outros aspectos do "preâmbulo" revelam a subserviência à moda - por exemplo "democracia" e "transparência" aparecem como tendo o mesmo valor -, mas esta filiação ideológica disfarçada é o mais grave. A maioria dos europeus não é maçónica, muitos não são sequer republicanos, muitos consideram que antes do cidadão está "a persona" e esta remete para valores transpolíticos de carácter religioso, bastantes vivem em estados onde há "religiões de Estado". Isto é que é verdadeiramente a Europa, a grande Europa, a Europa que forjou uma cultura europeia de diversidade e confronto, de diferenças e tradição. A Europa do "preâmbulo" é uma pequena Europa, sectária, que reduz em vez de enriquecer. Por estas e por outras, é que não desejo uma Constituição Europeia que me obrigue a ser o que não sou.
Linguagem de Fogo
Por FREI BENTO DOMINGUES
Domingo, 08 de Junho de 2003
1. Não se deve estranhar a teimosia do Vaticano na defesa de uma referência explícita ao cristianismo no "Preâmbulo" do projecto da futura "Constituição Europeia". É normal que tenha incitado os cristãos a participar nessa campanha, embora nem todos tenham a mesma opinião acerca do seu alcance.
O cristianismo não é, em primeiro lugar e sem mais, uma religião do Livro. Como nem sequer a letra da Bíblia sacraliza - "a letra mata, o espírito vivifica" -, não será pela falta, num texto político, de uma referência explícita ao cristianismo que a sua memória se vai perder.
Mas quando se evocam as heranças da Europa e se omite qualquer referência ao cristianismo não se está a ofender apenas a verdade da História. Faz-se de conta que o cristianismo é uma herança para esquecer. E isso é sentido como uma provocação.
No ano 2000, a Igreja Católica estabeleceu, por palavras, gestos e obras, a distinção entre a tradição cristã e as traições ao que ela veio trazer ao mundo de mais genuíno. Pediu perdão publicamente, ao lembrar as vítimas desses escândalos.
2. Em toda esta questão não se deve esquecer um texto do filósofo alemão Jurgen Habermas sobre a identidade europeia e a justificação de uma política externa comum. Foi assinado também pelo filósofo francês Jacques Derrida (cf. "La Republique", 4-6-2003). Destaco, neste poderoso artigo, não a sua tese essencial, mas apenas alguns pontos que aqui me interessam.
Como observa J. Habermas, "o cristianismo e o capitalismo, a ciência da natureza e a tecnologia, o direito romano e o código de Napoleão, a vida urbana, a democracia e os direitos do homem, a secularização do Estado e da sociedade são conquistas que já se difundiram por outros continentes".
E não há dúvida de que a fisionomia espiritual europeia, que se enraíza na tradição judaico-cristã, possui certos traços característicos. "Esses traços, conotados com o individualismo, o racionalismo e o activismo, são partilhados pelos Estados Unidos da América, pelo Canadá e pela Austrália. O Ocidente como horizonte espiritual, intelectual, estende-se para além da Europa."
As identidades também se constroem, mas não de forma arbitrária. A distinção entre as heranças que assumimos e as que recusamos exige muita cautela, tanto mais que depende muito dos pressupostos e do tipo de leitura que servem de base para essa escolha.
A relação das Igrejas e do Estado desenvolveu-se na Europa moderna de forma diferenciada. Mas apesar dessas diferenças, como observa J.Habermas, "a religião assume uma análoga posição a-política no seio da sociedade civil. E mesmo que se possa lamentar esta privatização social da fé, importa reconhecer que ela teve, para a cultura política, consequências desejáveis. Por estas latitudes, é difícil imaginar que um presidente vá começar o dia, enquanto homem de Estado, por uma oração pública e justificar certas decisões políticas de peso em nome de uma missão divina".
3. Seja como for, uma referência explícita ao cristianismo no "Preâmbulo" da Constituição Europeia é infinitamente menos importante do que inscrever a mensagem de Cristo e a sua energia divina no coração e no testemunho das novas gerações europeias.
Mais do que garantir em papéis a memória da antiga evangelização - embora não sejam acções incompatíveis -, é preciso suscitar comunidades cristãs entusiastas que vivam o Evangelho, em profundidade e com alegria, ao ritmo dos sinais dos novos tempos.
Com esse propósito começou no passado dia 23 de Maio a missão do Congresso Internacional para a Nova Evangelização, que durante quatro anos vai agir em Viena - como já está a acontecer (2003), passará a Paris (2004), a Lisboa (20005) e a Bruxelas (2006), envolvendo as pessoas nas ruas, nas praças, nos cafés, nas casas, nos espaços de divertimento e de cultura. Os cépticos dirão: vamos ver em que é que isso vai dar!
Importa, todavia, não esquecer que hoje é dia de Pentecostes. Era uma festa das primeiras colheitas. Celebrado cinquenta dias - daí o nome - depois da Páscoa judaica, passou a comemorar o dom misterioso das Tábuas da Lei a Moisés, no Monte Sinai.
Segundo um texto eufórico dos Actos dos Apóstolos, foi nesse cenário de concentração de peregrinos em Jerusalém, de origens muito diversas, que, há dois mil anos, começou, na rua, a Igreja como missão do espírito de Cristo, um Espírito invencivelmente sonhador. Para Ele, as diferenças de povos, raças, tradições, culturas, línguas e religiões não constituem uma maldição. Não têm que servir para acirrar desconfianças, conflitos e destruições. É pelo reconhecimento activo das diferenças - o reconhecimento do outro na sua alteridade - que se abre o caminho para a paz.
É esse o milagre do Pentecostes. Surgiu uma linguagem inaudita, uma mensagem de fogo na boca dos apóstolos que abria diante de cada pessoa a oferta de um caminho novo.
Não vou dizer que já é tempo de passar de uma globalização imperial, que arrasa as diferenças, para outra que desperte a originalidade de todos. A frase secou ao nascer. Mas o calendário litúrgico existe para resistir à desolação. Vem Espírito Santo e abre o horizonte.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, junho 12, 2003
