quinta-feira, abril 03, 2003
LITERATURA
GABRIEL GÁRCIA MÁRQUEZ
A narrativa que se entrega ao escorrer da memória
ANTÓNIO RODRIGUES
Quando um escritor adianta na epígrafe da sua autobiografia que «a vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como recorda para contá-la» está a avisar-nos para duas coisas: para as partidas que a memória prega a quem tenta recordar; e para o facto de um escritor sempre tratar a sua realidade (e a dos outros) como matéria de ficção.
Esclarecido o facto, Viver para Contá-la lê-se como o romance dos primeiros passos de um escritor tão apaixonado pela vida como pela literatura. Evoca histórias e personagens, episódios e locais que, percebemos, depois se transfiguraram em personagens e ambientes dos seus livros.
Num discurso lido no lançamento do livro na Colômbia, em Outubro, o sobrinho, Esteban García Garzón, actor e filósofo, dizia a determinada altura: «Que realidade será essa que, depois de 50 anos de vida a transformá-la, inundado de Macondo até aos pés, regressa a ela com todas as variações possíveis dos acontecimentos que ele mesmo viveu?»
Mais que a ordem cronológica das coisas, García Márquez prefere a narrativa matrioska: um episódio leva a outro e este a outro e assim sucessivamente, até ser retomado o fio da meada cronológica. E a seguir o deixarmos outra vez. Como quem entrega a narrativa ao escorrer da memória.
Mas este primeiro volume imenso (579 páginas) de uma autobiografia que promete vir a ter três (o escritor acelerou o processo porque a doença de que sofre deixou-o com medo de ser incapaz de terminar a tarefa) está perfeitamente balizado: da infância até à viagem para a Europa em 1955; cinco semanas para cobrir jornalisticamente uma conferência internacional em Genebra que se transformaram numa estadia de mais de dois anos.
Porque se o escritor se deixa seduzir pela forma como a memória trata de reinterpretar a «verdade», nunca o escritor deixa de ter o total controlo daquilo que aparece contado.
Mesmo que tenha de recorrer a muitos terceiros para compor o quadro, o que lemos são as memórias desse jovem devorador de livros, frequentador de tertúlias e bordéis, empapado até aos ossos de uma herança familiar que soube transformar em ficção, quando não empapado da chuva que o apanhava a dormir ao relento quando já esgotara a possibilidade de inventar formas de conseguir um quarto para dormir.
Já o escritor argentino Tomás Eloy Martínez o dizia no El País: «As memórias de Gabriel García Márquez são tão brilhantes como os seus romances, embora tenham a vantagem de as voltarem a contar desde o lado da realidade... ao contrário dos romances, onde a força da narrativa torna verosímil o impossível, nas memórias todo o sucedido pareceria impossível se não soubéssemos que é verdade.»
O avô Nicolás, protagonista de Cem Anos de Solidão, O Outono do Patriarca e Ninguém Escreve ao Coronel, esperou até ao fim dos seus dias por uma pensão de guerra que nunca chegou. Macondo, a cidade mítico-literária do escritor, era a quinta da United Fruits Company, a multinacional americana que marcou o século XX latino-americano, e serviu para baptizar a real Aracataca, localizável geograficamente e, por isso, menos passível de se entregar nos braços da imaginação.
Se o coronel Nicolás é o herói da infância, Viver para Contá-la mostra que a biografia do escritor está marcada pelas mulheres, a avó Tranquilina primeiro (matriarca e imperadora do lar) e a mãe, Luisa Santiago Márquez. Começa assim este primeiro desatar de memórias: «A minha mãe pediu-me que a acompanhasse para vender a casa». Pela forma como acaba, podemos perceber quem dominará a segunda parte: a mulher, Mercedes. Sobre ela, disse um dia: «Tenho sido capaz de escrever porque Mercedes leva o mundo às costas».
BÓNUS
Com a tradução de Viver para Contá-la, a Dom Quixote oferece, exclusivamente com a primeiro edição, um pequeno opúsculo de Carlos Fuentes que, basicamente, é um conjunto de pequenos relatos sobre a grande amizade que une o escritor mexicano ao colombiano, que os amigos tratam por Gabo. É um pormenor que fica bem, porque García Márquez sempre disse que só escrevia para que os seus amigos gostassem dele.
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posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, abril 03, 2003
